quinta-feira, 31 de julho de 2008

Dois caminhos para as trevas no paraíso:



Notas após a leitura de “NÃO PASSARÁS O JORDÃO” in trevas no paraíso:



Caminho1, a memória:

Como já relatei em outros textos, a ditadura militar, desde quando eu era muito pequeno, sempre mexeu comigo de uma forma que até hoje nem eu entendo. Já pensei até que desencarnei nessa época e reencarnei imediatamente em 1983.
Mas não sinto fascínio por ela como quando, vez por outra, ela virava assunto na mesa de bar pós-aula da faculdade. Companheiros exaltados, citando o discurso de Caetano “vocês não estão entendendo nada”, canastrões de peito estufado adorando a platéia que lhes rendia atenção ao narrar as formas de torturas que vagamente leram na orelha de “Brasil nunca mais” (E você pode ir conferir que este livro não tem orelha.. Só quero ser um pouco perverso).
Enfim ao contrário dessa performance-pós-ditadura-que-não-vivi, o governo militar me faz lembrar inevitavelmente da figura de Wladimir Herzog que já estava nos meus livros de história da sétima (ou seria oitava?) série . Pendurado, suposto suicídio, judeu, jornalismo, TV Cultura. Como também já falei, encharca a memória a minissérie da globo, o filme baseado no livro do Gabeira, nessa época pensei até em fazer vestibular para História, etc, etc.
E como na história não há “se” prefiro nem arriscar a pergunta que meus colegas se fazem: “O que eu teria feito SE tivesse nascido sob a ditadura?”

Me resguardo o direito de não cantar um passado dilacerado que não vive, pelo menos não daquela forma quase necro-prazerosa e na segurança da democracia. Até por que diante dele fico paralisado, constrangedoramente paralisado. E indignado. Indignado com a não-punição dos abusos. Indignado com o silêncio das autoridades que fazem vista grossa sobre a abertura dos arquivos daquele período de trevas.
A verdade é que o que vi, li, ouvi sobre a ala HARD da ditadura gera em mim um sentimento de IMPOTÊNCIA GARRAFAL. Tão grande que só Susan Sontag conseguiu descrever mais ou menos o que este tema me faz sentir. Estou falando do livro “Diante da dor dos outros”.
Para a professora Rosa Bueno Fisher , Sontag mostra que temos “o sentimento intenso e contínuo de que, afinal, não há nada a fazer diante do horror e das injustiças. E as tragédias parecem provocar uma certa passividade, um misto de solidariedade com os que sofrem e de não-cumplicidade com aquilo que produz o sofrimento.

Talvez a frase central do livro da ensaísta a ensaísta americana, seja: “NOSSA SOLIDARIEDADE PROCLAMA NOSSA INOCÊNCIA, ASSIM COMO PROCLAMA NOSSA IMPOTÊNCIA” (SONTAG, 2003, P. 86).
Credo. Parto pro próximo caminho antes que me perca neste.


Caminho 2, o livro:

Tudo isso me veio a tona pela leitura de “Não passarás o Jordão”. De Luiz Fernando Emediato. Confesso que minha leitura da novela foi extremamente digamos assim.. .viciada. No sentido de que antes de iniciar o Jordão já havia lido muito sobre o escritor, a comparação com Shirley Temple, um auto-reconhecimento de exagero nas críticas positivas sobre o texto, etc, etc.
Emediato cria a história de Claúdia B. militante comunista presa e torturada pelo governo militar. Há ainda a intercalação com a transcrição do Laudo cadavérico de Wladir Herzog e de sessões parlamentares tendo como temática os direitos humanos.
Durante a leitura (e estou com pouquíssimo tempo para ler, não fosse a qualidade do texto e minha fixação-repulsa pelo tema) a figura de Herzog estava todo tempo na minha frente entre o livro e eu. Mas não era aquele da foto do livro de história. Era a aquela figura viva, careca, com olhar doce, meio de lado.
O resgate contemporâneo da narrativa de Emediato tem esse tom de concomitância: o escrever e o viver simultâneos. Neste sentido ela [a narrativa] não é uma avaliação das trevas ou do paraíso, mas uma espécie de diário de campo ficcional no bojo –e às vezes nas adjacências- do furação (estendo esta constatação para os outros contos que já li da coletânea: verdes anos, Os lábios, Zarathustra).
Em suma, para mim a novela trata antes de tudo da banalidade do mal nos tempos da ditadura militar. “Extrair confissões é um arte” (p. 214) diz o torturador. E não cito “a banalidade do MAL” por acaso. Esta é uma das categorias principais das reflexões da filósofa Hannah Arendt acerca das Origens do totalitarismo (mesmo que para a escritora só reconhece como regimes totais o nazismo e o stalinismo). Mas vejam que interessante no final do texto de Emediato o narrador diz:
“Mas Cláudia imagina, na solidão irremediável do seu isolamento, que lhe mataram tudo, que lhe tomaram tudo, mas não sua capacidade de pensar” (P. 241). Vejam agora o que diz Arendt:
O isolamento é a impotência, isto é, a incapacidade básica de agir , [nele] as capacidades humanas de ação e poder são frustradas. Mas nem todos os contatos entre os homens são interrompidos , e nem todas as capacidades humanas são destruídas. Toda a esfera da vida privada, juntamente com a capacidade de sentir, e inventar e de pensar, permanece intacta [diante do fenômeno totalitário]. (ARENDT, 2002: 527)

Iisso confirma a minha tese de que a arte sempre sente primeiro antes das teorias racionalizem. Mesmo diante da impotência garrafal, diante da dor do outro (depois comento o espetáculo que vi baseado no livro e encenado pela Cia de dança Lia Rodrigues do RJ) não é suprimida a possibilidade do NOVO (também GARRAFAL) e como hoje estou cheio de citações aí vai mais uma:

“nem mesmo os governos totalitários podem negar essa liberdade (...) por que ela equivale ao fato de que os homens nascem e que, portanto, cada m deles é um novo começo e, em certo sentido, o início de um novo mundo” (Arendt, 2002: 518).

Emediato finaliza aquela violenta e sombria novela exatamente com esta esperança. Pois “tudo é possível, posto que existe a esperança”(p. 241). Mesmo que a experiência histórica tenha mostrado que, como disse Florestan Fernandes, ocorreu uma conciliação pelo alto. Na negociata da eleição de Tancredo, na virada do Paulo Brossard (não vou ser hipócrita, não sei nem quem é) e até mesmo nos descaminhos dos projetos que gestaram o Partido dos Trabalhadores. Diante disso tudo, da dor do passado recente e da dor contemporânea na “ fome dos meninos que têm fome”(como cantou Adriana Calcanhoto) Emediato resgata em seu texto a antiga proposição do marxista italiano Antônio Gramsci: “Pessimismo no diagnóstico, otimismo de vontade.” Eu iria terminar esse post assim:

Meu deus (note o dê minúsculo) como a estupidez humana pode ser grande.

Mas como Emediato adora personas, signos e arquétipos bíblicos. Encerro com o último parágrafo de Origens do totalitarismo onde a JUDIA Arendt revela de onde busca inspiração na sua reflexão sobre a vida ativa: SANTO AGOSTINHO.

“Permanece a verdade de que todo fim da história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa,a única ‘mensagem’ que um fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est- ¬‘o homem foi criado para que houvesse um começo’ disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós”(2002: 531)

GIL “pede pra sair” e Lula aceita... pior para a cultura.


Depois de colocar o Ministério da Cultura à disposição pela terceira vez, Gilberto Gil teve ontem o seu pedido de demissão aceito pelo Presidente Lula da Silva. Noticiários de TV diversos tentaram reduzir a questão dizendo que o Ministro não estava encontrando tempo para fazer seus shows. Este, nem de longe, parece ser o motivo central.
Um dos últimos remanescentes da gestão da “esperança que venceria o medo” Gil na verdade estava descontente como sua pasta há algum tempo, principalmente por questões de cortes e superávit primário que não possibilitaram o almejado 1% do orçamento brasileiro para a cultura com recomenda a UNESCO.
Conduzindo a “prima pobre” das políticas públicas em âmbito Federal, o cantos baiano foi responsável por importantes mudanças nas políticas culturais do Brasil.
(*) Relativizou o monopólio que imantava recursos para o Rio. O quw isso lhe redeu diversos inimigos.
(*) Enfraqueceu o poder daqueles “artistas” (mal) acostumados a mamarem nas tetas do Estado e viverem à “sombra do poder” como diria Georg Lukács tomando emprestado a expressão de Thomas Mann.
(*) Depois de 8 anos de Neo-Liberalismo, privatização do dinheiro público (leia-se leis de incentivo, redução de impostos, fundações, etc.) promovido pelo Welfort, Gil foi o primeiro ministro brasileiro a enfrentar o desafio de gerir a cultura para além do sinônimo de Belas-artes.
(*)Aventurou-se pelo conceito antropológico de Cultura (modo de ser, pensar e agir) e fomentou aquelas expressões não inseridas nas lógicas do lucro (e que, portanto, não poderiam se auto sustentar). Aproximou-se, assim, do conceito de “exceção cultural” criado pela França para enfrentar a tentativa de subordinação de todas as expressões culturais à lógica da OMC.
(*) E por isso foi acusado de favorecer sua área artística pessoal (a música popular) em detrimento, por exemplo, da literatura.
Na verdade ao fomentar os pontos de cultura e por em pauta a criação de um Sistema Único de Cultura (com todas as duas limitações e perigos de burocratismos) Gil deu passos importantes para a questão da impessoalidade do Estado nesta área.
Não sejamos tolos pensando que a política de apadrinhamento acabou dentro da Gestão Gil, principalmente tendo em vista um país como o Brasil, com dimensões amazônicas e características políticas das mais diversas. Entretanto, foi flagrante a originalidade e o sucesso do ministro-cantor no pobre-ministério.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Caio Fernando Abreu - inventário de um escritor irremediável, de Jeanne Callegari

By: Alexandre S.

(sob a licença Creative Commons BY-NC-SA 2.5*)

Reza a lenda que havia um professor na USP – como Caio, sou chique, não vou dizer o nome – que para alfinetar Marilena Chauí sempre dizia: “o problema da Madame são as aspas”. A afirmação -perversamente- insinuava que a filósofa não criava nada, mas apenas transcrevia ou adaptava o pensamento de Espinosa para a realidade brasileira. Não li o filósofo do século XVII o suficiente para me posicionar definitivamente em relação a essa questão. Mas em relação ao Perfil de “Caio Fernando Abreu – O inventário de um escritor irremediável” que Jeanne Callegari escreveu eu acho que posso. Afinal de contas, como todo fã, eu também tenho “um Caio para chamar de meu”, ou seja, possuo a minha versão do escritor gaúcho.

Mas seria injusto e mentiroso se dissesse que Jeanne faz uma simples colagem. Fruto de um trabalho árduo, entre dezenas de entrevistas (talvez o que mais forneceu um arejamento ao livro) esta mineira de apenas 27 anos (só dois anos mais velha que eu!) é uma heroína. O resultado é que o livro encanta sob alguns aspectos, faz rir em diversos e, entretanto, peca em algumas omissões e/ou erros metodológicos.

Primeiro você acha que é muita audácia querer contar a caleidoscópica vida de Caio F., Laika, Jacira, Marilene, e todas as demais personas de Caio Fernando Abreu em menos de 200 páginas. E é. E talvez o que, mais interesse deste relato seja essa arqueologia “apressada” de uma jovem que não foi contemporânea do escritor biografado (ou seria “perfilizado”?). Já na introdução a autora fala da dificuldade em compilar os “cem mil Caios”. Via de regra acho um erro começar qualquer criação artística com desculpas. Entretanto nesse caso, foi muito bem colocada para tentar neutralizar as, como dizia o próprio Caio, “antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio.”

Outro acerto: na verdade era uma furada da qual ela deve ter estado consciente desde o começo e, enquanto pôde, evitou. É o seguinte, quem lê algo sobre a vida de Caio espera uma linguagem derramada no melhor estilo “Caio F., o primo da Cristiane”. Não é o que acontece. Contido, o livro em alguns momentos é francamente acadêmico. Há trechos em que você pode visualizar (mentalmente) até a formatação original com os recuos de parágrafo e todas aquelas regras da ABNT. Mas isso não é uma perda. Não ter se arriscado a “imitar o rítmo-narrativo-Caio-F.” salvou-a, por exemplo, de comentário semelhantes aos que José Antônio Arantes fez sobre Michael Cunningham em relação ao livro “As horas”: “é uma travesti das obras da romancista (...) Não tem nada a ver com Virginia Woolf”, disse o crítico literário. Posição esta severa demais, uma vez que, sendo cópia ou não, aquela é uma obra com vida própria. Bem, voltando à Jeanne, há nela tentativas de lirismos (segundo a ilustrada tão “lugar-comum” quanto alguns momentos de Caio), mas não é o forte da obra. Concordo e volto a eles mais embaixo.

A jornalista mineira acerta a mão quando estrutura a narrativa como –dentro de suas limitações- um romance. Há ainda certo o tom cinematográfico nele. Uma interpretação muito pessoal diz que, não por coincidência – pois como dizia Jung é puro sincronismo – o “Perfil” se aproxima da obra de Cunningham e de referências importantíssimas de Caio, como foi a sua paixão pelo cinema.

Se no prólogo de “As horas”, o romance se inicia com o suicídio de Virgínia, o prólogo do

“Perfil” de Caio é aberto pela sua tentativa de suicídio. Outra sincronia é que o primeiro capítulo de ambas as obras têm uma mutação brusca no tempo exigindo de ambos os narradores quase a mesma frase: “Estamos em Nova York, no final do século XX” (As horas) e “É década de 1940 em Santiago do Boqueirão” (no perfil). Até aí pode-se argumentar que estou forçando a barra. E até concordo, entretanto é indiscutível a referência ao suicídio efetivo de Richard Brown em “As horas” ao narrar a tentativa de suicídio de Caio. Há ainda a fictícia forma, meio despretensiosa, de como a primeira frase dos romances “Mrs. Dalloway”(no livro “As horas”) e “Dulce Veiga” (no “perfil”) surgem. Ambas fora de casa. Uma dizendo “Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself” e o outro dizendo “Eu deveria cantar.”. Não há como passar despercebida também a desconfiança de Caio e Richard em relação ao ganho de prêmios e homenagens, que ambos receberiam por estarem no final da vida (um receberia o premio pelo conjunto da obra e o outro foi o patrono da feira de livros de Porto Alegre, respectivamente). As semelhanças continuam: ambos HIV positivos, ambos obcecados por Virginia Woolf, ambos fazendo seus amigos orbitarem em torno de suas fixações. Como diz Callegare “[havia] um teatro que Caio montava ao redor de si, sempre que tivesse platéia”(p.100). Ponto para o Perfil.

Outro ponto “cinematográfico” positivo que o livro traz é narrar as peripécias do Caio menino, no cinema de Santiago, nas brincadeiras no quintal com os primos, etc. Como não se lembrar do Totó de “Cinema Paradiso” obcecado por Brigitte Bardott, perdido naquela Gincarlo, no meio do nada? A revelação da fase “infância” de Caio, que era praticamente desconhecida do grande público, é um dos pontos altos do livro.

As “coincidências” continuam, pois o menino Totó se torna o adolescente sonhador e posteriormente o famoso cineasta (Salvatore) desiludido com tudo e com todos. Não é a toa que, sobre o filme, Caio escreveu ao amigo José Marcio Penido em 1990 “Impulsos de ligar [desmarcando uma entrevista], mentir que estou com febre, assistir pela terceira vez Cinema Paradiso, chorar novamente na cena dos beijos”. É mais que semelhança, como diria Caio, é atávico.

O clima cinematográfico continua na juventude com uma narrativa à lá “Bar esperança” (de Hugo Carvana) tendo por um dos momentos altos a transcrição do trecho: “alguém me disse, já faz tempo, num bar: ‘um dia alguém precisa virar a mesa ao invés de só virar uma Brahma’. Arrotou, chamou o garçom (seria o Isaac?) e pediu outra”. Se a citação é convincente acerca do encurralamento daquela geração, a autora tende a reduzir o tema complexo e ambíguo da ditadura ao dizer que aquela “era uma dose amarga que a sua geração [a de Caio] tinha que engolir sem reclamar.”(pg. 75). Sabe-se, entretanto, que as formas de resistências, engajadas ou não, bem sucedidas ou não foram as mais diversas e imagináveis. Se o livro escorrega neste ponto ele acerta mais na frente ao contextualizar com hesito a transição dos 1970 para os 1980, da hegemonia do conto para a demanda de romances por parte das editoras (p. 138).

Caio, assim como Vera Fischer, ele dizia, nunca foi um funcionário público exemplar e, portanto às vezes parece dispensável a presença de discursos como: “embora fosse recatado a maior parte do tempo(...) de vez em quando tinha uns surtos de galinhagem”(p.146). Além de soar como uma “defesa” do morto frente a AIDS (fica parecendo que ele foi pego desprevenido numa pulada da “cerca da moral”) é redundante, pois já estava implícito e explícito no texto até então.

Há algumas questões de forma que não se justificam: como por exemplo, a repetida apresentação de alguns “personagens” e citação de fatos recorrentes como se não tivessem sido abordados anteriormente. Por exemplo, “o primo Neltlair, que viria a se tornar o cartunista Santiago” e por aí vai.

Algumas características básicas do escritor gaúcho a gente sempre teme que sejam esquecidas ou apenas vagamente citadas. Mas Jeanne primorosamente aborda algumas, tais quais a dificuldade do trabalho jornalístico, a terapia do “fala grosso veado!” e o fato de Caio sempre ter buscado em seus livros de conto uma unidade tanto temática como formal (pg. 85).

Esta unidade parece ser interpretada pela autora como uma quase identificação entre o literal com o literário; optando em diversos momentos por interpretar a vida de Caio a partir da ficção. É redundante dizer que a obra de Caio é escadolosamente auto-biográfica. Como bom leitor que foi de Graciliano Ramos – talvez mais influenciado pelo autor de “memórias do cárcere” do que muitos querem admitir, como diria Ítalo Moriconni- Caio buscava em suas vivências a sua matéria de criação. Mas não era uma simples transcrição do cotidiano, era uma auto-ficção.

Reduzir a ficção à literal narrativa do real pode ser um caminho. Mas há a possibilidade de desnutrir a interpretação. É que acontece com o conto intitulado “Além do ponto” de Morangos Mofados, no qual a maioria dos leitores e críticos (Jeanne está dentre eles) embarcam na narrativa como se ela fosse apenas “um homem à procura de um homem” quando na verdade Caio sempre dizia que aquela era um estória que relatava conto falava da procura de Deus. Falo isso não por acaso, pois um dos primeiros textos de Caio que li foi “Pela noite” e achei durante muito tempo (até me informar melhor sobre o escritor) que Caio era literalmente a personagem Pérsio.

Quando chega a metade do livro você, mexeriqueiro, se pergunta: e os casos de amor serão apenas citados? Nenhum desnudamento? Nada assim, meio, TV Fama? E tem, não no estilo TV fama, ainda bem, mas tem. E tem mais.

O trabalho trás à luz momentos importantíssimos e informações não tão fáceis de ser encontradas: destaco a transcrição IMPERDÍVEL do arranca-rabo ocorrido entre ele e minha conterrânea Rachel de Queiroz no programa Roda Viva da TV Cultura. Há também a participação no Programa do Jô, a informação sobre o encontro com Érico Veríssimo e pouco a pouco a revelação de um Caio melhor sucedido, em termos de reconhecimento de público, do que aquele que ele costumava pintar nas cartas. Há ainda a transcrição do texto belíssimo que Caio escreveu no programa da peça “Reunião de Família”, adaptada por ele do livro homônimo de Lya Luft.

Além de revelar a maioria das situações inéditas da infância, a autora põe novamente em público causos como o “namorico” com Cazuza, o incêndio atrapalhado no apartamento, a travessia da Europa ao som de “Xicotinho e Salto Alto”.

Está inesperada leveza faz a autora se permitir vôos também agradáveis, à lá Caio. Como quando conclui que era “necessário manter uma distância saudável dele, uma distância, digamos sanitária” (p.85) Ou quando para aliviar o peso do tema da AIDS revela que “o medo era tão comum quanto uma música da Legião Urbana”(p.108). E dá até para perdoá-la quando dá seus auspícios de tietagem: “Esse homem é ou não é um romântico incurável?”(p. 122). Só não dá para perdoar certos escorregos quando falta linguagem como em: “um atestado da maneira com Caio leva a vida” ( p. 59); “quem ele queria não o queria” – (p.11). Culminando num involuntário trava-língua: “Caio vivia seu caso com Cacaia” (p.112).

Dos grandes ausentes fica subtendido nos agradecimentos que Gil Veloso e Luciano Alabarse não se dispuseram a ceder entrevista. Mas há o silêncio também de outros nomes importantes como Lygia Fagundes Telles, João Gilberto Noll e Lya Luft. Coincidência ou não, não há cartas destes três escritores publicadas na coletânea de correspondências organizada por Ítalo Moriconni em 2002.

Há ainda outras coisas menores, contudo importantes. Como a passagem em que o texto dá a entender que Caio traduziu “Sonhos de Burker Hill” de John Fante, quando na verdade ele escrevera apenas a apresentação e se quisermos ser politicamente corretos ainda aparece a utilização do termo “homossexualismo” em vez de “homossexualidade” e “morreu de AIDS” e não “em decorrência da AIDS”.

Quando narra a primeira visita de Caio a Londres, Jeanne crava perfeitamente a frase “Sentia-se um estrangeiro onde quer que fosse sem possibilidade de cura”. A referência é explícita a Reinaldo Arenas. Entretanto esta é uma das omissões lamentáveis do livro. Talvez seu único erro grave. Nele, Arenas aparece erradamente como um chileno. Dá para pensar que é erro de digitação, algum lapso, “afinal já estamos no terceiro quarto do livro”. Mas à medida que o texto avança percebe-se que a autora talvez tenha passado despercebida por um ponto CRUCIAL (e me pergunto até se ela veio a conhecer a história) de Arenas. Pois é com a narrativa de Arenas que Caio elabora mais precisamente sua condição de estrangeiro eterno.

Cubano exilado, apátrida, amante de rapazes, perseguido, preso, censurado e mandado para campo de trabalho forçado pelo governo de Fidel, Arenas costumava dizer que a diferença entre Cuba e EUA (Socialismo e Capitalismo) é que na ilha você leva um “pé na bunda” e é obrigado a aplaudir enquanto que na terra do tio SAM você leva o mesmo “pé na bunda”, mas é “livre” para gritar. Ou seja, não há muita diferença quando se é, nos termos de Caio, um maldito.

Caio receberia em 1992 a mesma bolsa que havia sido ocupada anteriormente por Reinaldo com o mesmo objetivo de escrever uma peça de ficção dedicada a cidade de Saint-Nazaré na França. É lá que o escritor gaúcho encontra o livro “Confissões de Saint-Nazaret” de Arenas e a mais desolada declaração de desterro: “Aún no existe el sitio donde yo pueda vivir. Talvez para um desterrado — como la palabra lo indica — no haya sitio en la Tíerra. Sólo quiera pedirle a este cielo resplandeciente y a este mar, que por uno día aún podré contemplar, que acojan mi terror”. (Arenas citado por Caio em Crônica de pequenas epifanias)

Mais tarde Caio leria a auto-biografia de Arenas entitulada “Antes que anoiteça” (e tenta traduzí-la para o português mas ninguém se interessa) na qual, suponho tenha encontrado outras decepções, pois alí Arenas desmascara (palavras de Caio) “figurões tipo García Márquez, Severo Sarduy, Eduardo Galeano, Julio Cortázar e outros asseclas de Fidel”. Note-se que dentre estes, estão nomes abundantemente citados, implícita ou explicitamente por Caio em toda sua obra. Sobre o livro Caio diria ainda: “Jamais sofri tanto com um livro — nem mesmo Fome, de Knut Hamsum, ou A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.” (Vide Pequenas epifanias)

Em termos daquela equiparação literal-literário, o texto escrito por Caio em Saint-Nazaret (Bem longe de Marienbad) narraria a chegada do escritor àquela cidade e sua busca (frustrada) por Reinaldo Arenas.

Outra questão complicada é a redundância (nada Caio F.) na explicação de alguns eventos, como por exemplo, quando ao perceber a chegada de um amigo ao seu apartamento, Caio dá boas vindas dizendo: “Bem vindo à Filadélfia”(p.169) numa alusão direta ao seu estado soropositivo. E logo em seguida Jeanne interpreta o evento. Me pareceu desnecessária a forma como a autora esmiúça o fato para o leitor.

Pode-se argumentar que sem a explanação a informação ficaria incompleta. Mas me pergunto também se uma das características mais fascinantes dos textos do Caio não seria exatamente esse lado fragmentário, saturado de citações dos mais diversos tipos e das mais diversas artes que, de repente, às vezes muito tempo depois nos surpreende despercebidos e então começam a fazer sentido devido a outro evento ocorrido fora do texto em si: ter visto um filme, ouvido uma música, lido uma orelha de livro, que por sua vez, digamos assim, fecha a Gestalt. Dá sentido.

Este “jogo” de Caio F. com o leitor acontece quando, por exemplo, ele escreve à Penido devaneando sobre a possibilidade de seu belo imunologista descobrir a “cura” para a “AIDS”, então se apaixonariam e fugiriam para o Pacífico Sul. Numa referência que - propositalmente ou não- lembra uma versão adulta e gay para o filme “o olho de Lorenzo”.

O leitor/ jogador – às vezes chatíssimo, como eu posso estar sendo – geralmente tem “um Caio para chamar de seu” e percebe com facilidade os trechos nos quais o livro se torna uma seqüência de compilações de prefácios, reportagens (hoje vastamente disponíveis na internet) e até cartas e trechos de contos sem aquelas famigeradas “aspas” sobre as quais me referi no início do texto. Um exemplo é o não-crédito a Miguel Torga da clássica epígrafe desejada por Caio em “Estranhos Estrangeiros” (livro póstumo) e que aparece solta no “perfil”. Para este tipo de leitor, além das vantagens já enumeradas, fica a sensação de ordenamento linear (embora nem sempre creditado) do vendaval disperso de informações cibernéticas ou não, lendárias ou não.

Por outro lado, para o leitor iniciante fica esta obra introdutória que tem exatamente por mérito o acesso direto e confiável às informações da vida do autor, intercaladas com maravilhosas citações. E não seria esta a função de toda biografia?



segunda-feira, 28 de julho de 2008

notas esparsas I: Santiago Nazarian em 3 tempos

Enquanto lia “A morte sem nome” de Santiago Nazarian, frases soltas de diversos pensadores (com as quais nem sempre concordo) cortavam o texto, de forma nem sempre delicada, do escritor paulista. Atualmente estou nos “funerais” da citada obra e posso dizer que talvez o pensador mais renitente que “atrapalhou” minha leitura foi o crítico de literatura húngaro Georg Lukács. Mais especificamente seu livro “Marxismo ou existencialismo?” Nele Lukács desce o sarrafo em Husserl, Heidegger, Jaspers e Sartre e em termos de literatura não poupa nem Oscar Wild “salvando” poucos como Ibsen, Tolstoi e Mann.

Corta para meu quarto: Lá estava eu na minha cama com Santiago Nazarian, e Lukács insistindo em fazer um threesome literário dizendo:

“O homem que vive num mundo fetichizado não pode vencer o vazio interior senão por uma espécie de embriaguez contínua, assim como o morfinômano não vê saída senão no aumento da dose, quando seria o caso para ele de organizar sua vida de tal maneira que não tivesse mais necessidade de seu veneno. Eis por que o homem que vive num mundo fetichizado não poderia reconhecer que foi a perda de todo contato com a vida pública, a reificação do processo de trabalho, o desligamento do indivíduo da vida social – conseqüência da divisão capitalista do trabalho – que lhe inspirou a necessidade de embriaguez permanente... a fuga para a interioridade leva a um impasse tragicômico”.

Não vou aqui entrar no mérito do finado “realismo socialista” tanto porque dá pano pra manga (e eu não estou com tempo de divagar) como porque tou sem vontade meeeeeeeeeeesmo. Resta lembrar que na prática, tal método que conclamava a adesão á vida pública e às questões sociais acabou colocando as mentes dos escritores dentro de formas de rapadura (terá havido rapadura no Leste europeu?). Como estou podre de preguiça transcrevo trecho de carta de Caio Fernando Abreu pra Hilda Hilst sobre o assunto:

“Semana passada vieram [para França] – imagine- 15 escritores da Lituânia., Estônia e Letônia, para palestras e debates. Inacreditável: depois de 50 anos com a pata russa em cima deles, ainda têm aqueles conceitos do realismo socialista, de literatura ‘engajada’, etc. Fiquei pensando no que diriam de Lory lamby...”

Preciso dizer que de forma alguma estou desvalorizando a necessidade de intervenção na Questão Social e de na esfera pública (afinal sou um gramsciano e portanto, por tabela, dinossauricamente marxista). Entretanto aquela experiência histórica demonstrou que no campo das artes a criação de padrões é perigosa. (E já estou eu aqui divagando. Resisto à tentação e encerro parágrafo com Benedeto Croce – filósofo italiano polemizador de Gramsci- : a arte é educador enquanto arte. E não enquanto arte educadora. Poderia acabar aqui. Mas voltemos a Nazarian)

Lukács, mais a frente ainda naquela obra, vai acusar a arte daqueles escritores afirmando que tais relatos não falam ontologicamente de qualquer realidade última mas são “simplesmente um documento revelador do universo intelectual e sentimental de uma classe social de uma época”.
Discordo do “simplesmente” do marxista húngaro. Não acho que o feito de captar o mood de uma época seja simplesmente um “simplesmente”. Os atuais escritos de Nazarian dão muito pano pra manga e para entender a juventude contemporânea (e utilizo juventude pela falta de outro termo pq sinceramente... não há nada mais antigo que “juventude”).


Mas o que tem a ver Lukács com Nazarian?
Sim as personagens de “A morte sem nome” são desenraizadas e embriagadas. Mas não seria essa um característica fundamental do contemporâneo? Minha avaliação é que Santiago, Assim como seu – e meu- admirado João Gilberto Noll falam do Zeitgeist. O espírito de nosso tempo. Ou seja, falam daquilo que o tradutor de Noll para o inglês chamou, acertando o cerne, de “o real insuficiente”.

Impossível também não lembrar, quando leio Nazarian –e apesar da imaturidade compreensível de seu texto – de Samuel Beckett quando fala acerca do esgotamento das narrativas: “nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar”.

E é nesse deserto que Santiago e suas personagens ressaqueadas transitam e se saem “bem”. Ainda sem saco para desenvolver eu diria e recomendaria (ou não) a leitura do livro “Bem vindo ao deserto do Real” do filósofo Esloveno Slavoj Zizek.

É um livro sobre como nos relacionamos com o Real (em maiúsculo em referência a um dos três registros de Lacan: o Real, o Simbólico e o Imaginário, sei que é meio pedante deixar isso assim, solto, mas retorno ao freudiano em outro momento)

De imediato o que interessa e lembra na narrativa de Santiago está o que Zizek chama de “paixão pelo Real”.

No livro de Santiago Lorena vive uma virtualidade. Como nos jogos de vídeo game, a narradora-protagonista possui infinitos “lifes”. É como se o jogador/ narrador tivesse descoberto o código/ a senha para a eternidade (note-se que falo em eternidade –assim como a dos vampiros- e não imortalidade, resisto, penso em Hannah Arendt, volto:) e a partir de então estivesse pronta para derramar deliciosamente e sem culpas o seu sangue.

Essa postura para Zizek revela a nossa paradoxal “paixão pelo real”: incapazes de simbolizar,vamos direto ao ato, como no filme “Aos treze” de (Catherine Hardwicker, EUA, 2003) buscamos a experiência radical de cortar a pele e ver o sangue escorrer, ou há ainda aqueles que buscam praticar barebacking na roleta russo de portadores ou não do HIV para manter relações com eles e experiemntar, no corpo, a sensação que poderá lhes fazer “vivos” justamente pelo risco da contaminação. O que se busca? A resposta de Zizek é “basear o ego na realidade do corpo contra a angústia de sentir-se inexistente”. Apenas a morte de Lourena é capaz de confirmar que ela está viva.

Há ainda outras temáticas interessantíssimas encontradas neste texto: a geração pós-AIDS e o elogio ao sangue. Mesmo sangue que é bebido anonimamente por seres como Vampiros, que como disse anteriormente, são privados, eternos pq vivem ininterruptamente mas não são imortais pq estão apartados do espaço público. Há ainda outras características de romance-vídeo game, além dos lifes, a personagem se transmuta, escorre por ralos, sobrevive sem trabalhar, comprar roupas, comida, etc.–possui, portanto, o tal “life” sempre cheio. E por falar em comida, esta, quando aparece sempre tem características repugnantes, revelando outra característica do nosso tempo: a bulimia, anorexia.


A narrativa de Santiago [neste livro] é uma promessa. Como ele diz no seu blog: Ele quer confeitar o confeito. E talvez aí residam alguns pecados de seu texto. A opção pela linguagem derramada, cadenciada, quase musical deixa por vezes um gosto meio óbvio nas páginas. Chegando a algumas seqüências de frases serem concretamente previsíveis.

O fato é que o blog de Santiago é peça fundamental para compreensão mais totalizante de sua obra. Como ele disse em uma entrevista. As pessoas confundem as personagens com o criador (“Não leve personagem pra cama, pode acabar sendo fatal”). Como diziaRITA HAYWORTH: Os homens se decepcionam porque domem com Gilda e acordam comigo. Santiago diz não ser adepto de hard sex, só sangra um pouquinho (e isso lhe valeu até o título de escritor fofo) e é muito carinhoso.
Qualquer semelhança com a segunda do século XVIII não é mera coincidência. Lá os jovens de posses sofriam do “mal do século” , fumavam ópio e escarravam sangue, discretamente, num lenço Branco e de Seda. E como lembra Emediato eles eram pálidos como os de hoje, matando-se de amor ao ler o Wether do Goethe. Ao contrário disso, o próprio Goethe aos 80 anos ainda se divertia comendo camareiras, pândegos e bonachões.

Hahahahahahahaha! Ler Santiago é fazer esta disjunção entre o literal e o literário pois o escritor ao mesmo tempo em que caminha por essas searas hard, do desapego, do nomadismo na vida real mostra ser o típico operário “padrão” da acumulação capitalista flexível (volto a este tema e sei que frase é aparentemente incoerente pois supostamente não há padrão no flexível ). Ou seja, talvez sem perceber Nazarian põe em pauta a paralisia do pensamento que leva seus personagens (e também eu, você ) ao ato imediato diante do fluxo vertiginoso do contemporâneo.

Enfim, para um criador é perigoso racionalizar sua obra. Lembro que ao terminar de escrever a biografia de Genet, Sartre entregou os únicos manuscritos para passarem pelo crivo do autor de o diário de um ladrão”. Genet poderia ter ateado fogo nela, desaparecido ou simplesmente não ter permitido a publicação. Entretanto, ao ler análise do existencialista o mal já estava feito. Sartre “curara”/ “explicara” todos os demônios de Genet naquelas mais de quinhentas páginas. Resultado: Genet não escreveria mais uma linha a partir de então.

Santiago Nazarian ainda tem muito pano para manga e eu já estou pronto para o prédio, o tédio e pro menino cego.

MEUS Morangos Nervosos no Overmundo...

Morangos Nervosos...

http://www.overmundo.com.br/overblog/morangos-nervososfragmentos-de-caio-f-no-secxxi

O que disseram...
" Alexandre,foi a melhor descrição de um parto, melhor dizendo, do nascimento de um autor que eu já vi. Seu relato fascinante, delirante, extasiante e extremamente saboroso de como você (re) descobriu o genial Caio Fernando de Abreu me eletrizou. Não consegui largar o texto até a consumação: Caio nasceu; de (em?) Alexandre. Cinematograficamente. Literariamente. Um texto para se ler e guardar, repleto de referências juvenis que deram um nostálgico sabor de dè jàvu aos meus 57 anos bem vividos. Obrigado. E - mesmo com atraso de quase um ano - meus parabéns pelo belo texto. Abraços mofados. "

Nivaldo Lemos - JOrnalista (RJ)

"Se você não é escritor é o quê então. Por que seu texto sobre o Caio é texto de escritor.(...) Um grande Abraço e gostei muito do texto, sim. "

Luiz Fernando Emediato - Jornalista e escritor (SP)

terça-feira, 22 de julho de 2008

Santiago Nazarian...


Me instiga e tou sem tempo de elaborar as impressões e descentramentos (legais e perversos) que esse moço faz em mim.

"A" cultura cearence não existe.

Há dois meses a “prima pobre” das políticas públicas teve um importante momento de visibilidade. Foi criada a “comissão de defesa da cultura cearense” na Assembléia Legislativa. O que é para ser comemorado como um marco em nosso estado, deve também ser visto com atenção e cuidado. Principalmente se compreendermos que não existe “a” cultura cearense no singular.
Partir da lógica de defesa de uma singularidade pressupõe a inevitável pergunta: resguardar a cultura de quê ou de quem? A lógica da “defesa” parece reatualizar o princípio de conservação de uma essência culturalista ficticiamente pura. Dentro deste esquema de defesa do que “é” cearense o que seria, por exemplo, essencialmente "nossa" música?




O pós-pós-tropicalismo de Karine Alexandrino?















O som das bandas cabaçais?














O eletro punk do Montage?










Ou a ditadura do forró-acrobático?

Nessa nossa realidade latino-americana, onde elementos de pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade se hibridizam, não fazem sentido as antigas classificações estanques entre o tradicional e o moderno, o erudito e o popular ou o legítimo e o “fabricado”. Sob o risco de aderirmos, ainda que sem perceber, a fundamentalismos puristas ou a novos-velhos romantismos nostálgicos que propõem o retorno à “verdadeira” – e fictícia- singularidade da cultura cearense.
Há ainda necessidade de enxergarmos a cultura não apenas como sinônimo [apenas] das artes. Neste sentido é inadiável o debate sobre a interlocução que ela estabelece com as diversas mídias e o cotidiano dos cearenses.
Se os gestores não perceberem essa intersetorialidade imediata entre secretarias ou ministérios continuaremos passando ao largo de processos significativos que promovem a interlocução entre a cultura, a mídia e a educação. Numa sociedade onde a aquisição do conhecimento está cada vez mais descentrada – mas não fora- do livro e da escola é fundamental a adesão às novas tecnologias. Não que a simples incorporação das mídias nas pautas culturais vá por si promover transformações estruturais na sociedade mas no sentido de promover processos criativos e críticos para, com e através dos meios.

Enfim, se é necessária uma defesa, que defendamos a multiplicidade de vozes, nem sempre convergentes, que constroem as culturas cearenses. E sempre tendo em vista que, como disse Hannah Arendt, sem o espaço público que dê visibilidade a essas vozes, a liberdade de expressão equivale à liberdade do louco. Defendamos, portanto a permanente criação de arenas públicas nas quais sejam disputados e reinventados os significados e consensos –sempre provisórios- acerca das “cearensidades”. Os orçamentos participativos de cultura e a constituinte cultual parecem caminhar neste sentido.
Talvez um dos passos mais significativos de fomento desta nossa “pobre prima” seja a compreensão de que as culturas cearenses não cabem na cultura cearense, pelo menos não no singular.

domingo, 20 de julho de 2008

Clarice, mendiga.


“A desgraça não tem limites” – A menor Mulher do Mundo. Clarice Lispector

Dizem que depois de uma inusitada e estonteante suspensão do cotidiano vem dolorosa volta. A epifania passa. Como nos contos de Clarice, tudo retorna relativamente ao que, um pouco sem cuidado, convencionou-se chamar de “normal”. Então foi mais ou menos assim: depois de uma viagem a Salvador e de uma primorosa etnografia da noite urbana daquela cidade. A volta à rotina. Aos afazeres acadêmicos de pesquisador brasileiro mal pago. Uma preguiça assolava. Uma vontade de não fazer. Uma falta.

Passei uma semana assim. Meio no stand by. Inventando coragem decidi encarar a fera. A devoradora rotina. Seleção de textos, reformulação de artigos, esqueletos dos capítulos que faltam para a dissertação, pagamento de inscrições em congresso, etc. Didático e aplicado juntei uma pilha de textos, xérox e fichas e me dirigi à parada do ônibus. O destino: a Universidade.

Foi neste entre-caminho que a vi. Como naquela crônica triste do Caio Fernando Abreu sobre a dor da prostituta. Ela estava lá. Não, ela não era uma profissional do sexo. Poderia ficcionar dizendo que ela era uma mendiga, uma desgarrada, ou para utilizar os termos da academia: uma desfiliada. Mas ela também não era assim.
Arrastava duas crianças catarrentas (porque hoje estou meio perverso). No corpo a marca de uma vida sofrida. Gritando pela, provavelmente, filha de uns dois anos, descalça e sentada no chão. Folheando um novo testamento. No braço outra criança, calçada.

Mas o que me chamou atenção não foi aquele despossuir infelizmente naturalizado. Fui constrangedoramente fisgado por aquele olhar hipnótico que ela naturalmente exalava. Já o vira antes e como preparando um suspensezinho barato eu diria que fiquei tentando recordar de onde, de onde eu conhecia aquele fitar? Oblíquo e incisivo. Então performático eu diria que milhares de rostos passaram pela minha cabeça. Conhecidos, famosos, anônimos. As sinapses tentando fazer a síntese. O colorido do cérebro buscando.Como um google natural a varrer regiões da cabeça tão coloridas quanto um quadro de Andy Warhol. Cláudia Raia, Marelin Moorol, Clara dos Anjos.

Então, dando mais vida a ficção e incluindo um tema meio juvenil, meio bobo eu concluiria abismado que era o olhar de Clara dos anjos. Ele –o rosto - parou na minha frente. Semi-transparente, coloidal. Mas era a minha Clara, não a da literatura.
Ainda num simulacro de emoção eu voltaria ao ensino médio, meus dezessete anos. A menina por quem me apaixonei. E que sem ainda ter lido uma linha de Clarice Lispector, tinha aquele mesmo olhar cavernoso. Cavernoso como aquele rosto impresso nas orelhas dos livros. Cavernoso como o olhar daquela mulher arrastando as duas crianças catarrentas na parada do ônibus.

Hoje Clarice desapareceu, Clara está na Itália – pelo menos quero acreditar que sim. E aquela mulher? Exausta. Maltratada. Vencida pelo peso de ter nascido na barriga da miséria. Sem a regalia uma trégua como uma semana em Salvador, por exemplo. Onde estará?

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Francisco para além do Bem e do MAL



Sábado último a Rede Globo exibiu o inédito na TV ( mas não nas bancas dos camelôs) “Dois filhos de Francisco”. Confesso algumas coisas:
(*)Que preferia estar fazendo algo mais interessante do que terminar o sábado rendido ao Supercine.
(*)Que já havia assistido o filme anteriormente
(*)E que mais uma vez assisti e me emocionei

Seria mais um comentário piegas se este filme não me lembrasse profundamente aquela idéia do único livro do Nietzche que li até agora : Para além do Bem e do Mal. Olhares mais desatentos e igualmente pré-conceituosos poderiam reduzir aquela obra ao slogan “Eu sou brasileiro e não desisto nunca” e aquela pieguice melodramática da ascensão social como saída individual para a invisibilidade da pobreza (ah Marcuse... tão antigo e de certa forma, de outra forma, tão atual).
O que me espanta nesse filme e que me arranca algumas lágrimas, até odiosamente involuntárias, constrangidas, é a mesma sensação que tinha quando via Daiane dos Santos dançar.
Adjetivar Daiane como boa, excelente, excepcional é reduzí-la. Chamar a história de Zezé de Camargo e Luciano de triste, vencedora ou enquadrar o tal Francisco como perverso, malvado ou iluminadamente bondoso, é flagrantemente In-su-fi-ci-en-te.. E isso não tem nada a ver com a música da dupla (para a qual, eu desde a infância fazia cara feia e hoje, com a possibilidade –anteriormente negada- de evitá-la osmoticamente, simplesmente não ouço).

Para captar a dura realidade desses Brasis cuja “dor não sai no jornal” (já dizia Chico) SÓ e Somente só um Filósofo do tamanho do Bigodudo.
Quem for politicamente correto pule esse parágrafo: Ver aquele ponto preto, abaixo da estatura, fora da idade adequada, nascido num país no qual esporte é sinônimo apenas de futebol, inventar um “duplo twist escarpado” ao só de brasileirinho, num esporte dominados por mocinhas romenas branquelas e sem graça É PARA ALÉM DO BEM, DO BOM , DO BUM E DO MAL. É a flagrante e dilacerante vida que insiste em pulsar e transgredir as amarras de classe, etnia e nacionalidade. É o corpo abjeto, penetra que, como dizia Gonzaguinha “se está de pé é de teimoso”. Em uma palavra: SUPERAÇÃO



Ok, ok. Pode parecer um pouco nacionalista, complexo terceiro-mundista de inferioridade, OK eu li muito Marx, mas ver a história daqueles meninos, tão parecidas com muitas e tantas outras histórias ouvidas por quem vive nessas bandas “de cima” do Brasil, me faz pensar nas centenas de milhares de Daianes que escoam seus talentos ainda hoje trabalhando como domésticas em “casa de família” (tão antiga meu deus, essa conversa), nos Edsons Cordeiros que atrofiam seus gifts nas lavouras (o próprio só estudou até a 6ª série do ensino fundamental), e por aí vai. Como seria a história dos dois filhos sem as despirocagens de Francisco? Seriam realidades fílmicas? Se, por algum milagre a resposta fosse sim, eu não pagaria para ver. Lembro-me agora dos guerreiros atenienses e a obsessão (será que esse termo já existia naquela época?) por cruzarem a fronteira do cotidiano, do ordinário e adentrar a esfera do EXTRA-ordinário, da imortalidade (mas isso é pano para tecer outro post).

Outro verso de Chico (por que há Chico para todas as ocasiões) diz: “ e eu que não creio, peço a deus por minha gente, que é gente humilde que vontade de chorar”
Francisco não foi humilde, Ele pertence ao seleto grupo onde estão Clarice, Rimbaud, Joyce ou Artaud. Como disse Caio F. perseguiram o Sonho.
Não, Francisco não tinha fé. Por que a fé é baseada em aquilo que não se vê. Ele viu e acreditou. E pagou o preço (como os do hall acima) de ser chamado de doido, perturbado, indiretamente assassino.
Por que “A vida pulsa e a luta continua” – Caio F.