segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Adeus [?] a Claudia Wonder


Recebi, em plena Assembléia Geral da ABEH, a notícia do falecimento de Cláudia Wonder.
Fico me perguntando: "Até quando meu [d]eus, até quando?"

Reproduzo abaixo um texto do Caio sobre esta figura que, confesso, ainda estou por conhecer:

MEU AMIGO CLAUDIA
Por: Caio Fernando Abreu

Maravilha, prodígio, espanto:
No palco e na vida, meu amigo Cláudia é bem assim:
Meu amigo Cláudia é uma das pessoas mais dignas que conheço. E aqui preciso deter-me um pouco para explicar o que significa, para mim, “digno” ou “dignidade”. Nem é tão complicado: dignidade acontece quando se é inteiro. Mas o que quer dizer ser “inteiro”? Talvez, quando se faz exatamente o que se quer fazer, do jeito que se quer fazer, da melhor maneira possível. A opinião alheia, então, torna-se detalhe desimportante. O que pode resultar – e geralmente resulta mesmo – numa enorme solidão. Dignidade é quando a solidão de ter escolhido ser, tão exatamente quanto possível, aquilo que se é dói muito menos do que ter escolhido a falsa não-solidão de ser o que não se é, apenas para não sofrer a rejeição tristíssima dos outros.

Bem, assim é meu amigo Cláudia. Eu não o/a conhecia pessoalmente. Ou melhor: conhecia do palco, onde Cláudia enlouquece cantando, falando e mostrando-se de uma maneira tão atrevidamente escancarada que fica linda, lindo. Só conversamos face a face, pela primeira vez, há três semanas. Parece não ter nada que ver, mas tem tudo: eu adoro Marina Lima. Há três anos, no Rio, conheci Sergio Luz, que atualmente dirige Marina. Éramos amigos de (Ah! Os bordados da vida...) Ana Cristina César, e foi através dela que cruzamos caminhos. Mas isso é outra história. Ou nem tanto. Há três semanas, Sergio me convidou para jantar com ele, Marina, Antonio Cicero e outras pessoas. Lógico que fui. E lá estava também Cláudia, no meio de uma mesa enorme. Não havia lugar para todo mundo. Sentamos numa mesa próxima. Pouco depois, Cláudia veio sentar-se conosco, porque havia um senhor na outra mesa – um senhor poderoso – que não parava de agredir Cláudia. Começamos a conversar. Acabamos no Madame Satã, onde raramente ou nunca, felizmente, existem senhores como aquele, agredindo pessoas como Cláudia. Por não existirem interferências assim no mundo particular do Satã, foi que Cláudia e eu, naquela noite, nos tornamos amigos.

Para aquele senhor, e para a maioria de todos os outros senhores do mundo, a presença de Cláudia deve representar a suprema transgressão, a mais perigosa das ameaças. Tanto que andam matando pessoas como Cláudia, na noite negra e luminosa de Sampa. É que meu amigo Cláudia incorporou, no cotidiano, a mais desafiadora das ambigüidades: ela (ou ele?) movimenta-se o tempo todo naquela fronteira sutilíssima entre o “macho” e a “fêmea”. Isso em uma sociedade em que principalmente o genital é que determina o papel que você vai assumir. Porque se você é homem, você tem de fazer isso e isso e isso – não aquilo. E se você é mulher, deve fazer aquilo e aquilo e aquilo – não isso.

Movendo-se entre isso e aquilo, meu amigo Cláudia conquista o direito interno/subjetivo de fazer isso e também aquilo. Mas perde o direito externo/objetivo de fazer nem isso nem aquilo. Tomamos vodca juntos na madrugada falando de solidão, essa grande amiga em comum de todos nós. Trocamos telefones, nos encontramos outra vez. Gosto tanto de seus olhos muito abertos, atentos a tudo, contemplando diretamente o mais de dentro de cada um.