quarta-feira, 17 de setembro de 2008

As metáforas de Saramago.


Sábado último fiz uma coisa que não faço com muita freqüência: Fui ver o filme sem ter lido o livro: Ensaios sobre a Cegueira. Como já relatei antes, protagonizado pela minha querida Julianne Moore.

Do pré-início: Fila quilométrica em pela Tasso City (leia-se Shopping Iguatemi. Que se há de fazer?). Enfim... adentrada a sala E-NOR-ME conseguimos um local bem bacana, bem de frente ao centro da tela (ao contrário de “Sex and the city – o filme” ONDE FICAMOS NA ESQUINA, DA ESQUINA, DA ESQUINA).

Dos traillers: 20 minutes de bobagens hollywoodianas com direito a Meryl Streep (12 vezes indicada ao oscar) se prestando ao papel de cantora-ex-hippie cantando “Mama mia here I go again” by: ABBA. Inclusive o título do filme é homônimo ao da música do grupo sueco.

Da forma do filme: a primeira sensação é o incômodo. Trilha estridente, cortante, chegando ao desagradável. A “LEITOSIDADE” da película também ajuda nessa sensação de desconforto, muitas vezes susto mesmo.

Da atuação: Mrs. Moore está linda, humaníssima. A lente de Meireles revela, o que eu não chamaria de imperfeições, mas humanidade, carne de gente, sardas, zooms, marcas. Como todos devem saber, Julliane interpreta a única personagem do filme que não perde a visão. E, por conseguinte, vê todas estas cicatrizes expostas. As suas e dos outros. Quase como uma voyeur do mundo ela olha para si e para fora. E numa situação de limite entre barbárie e “civilização” (sempre aspada) ouve-se, já depois da metade da exibição, um berro seu ao defender a posse de comida. Aquilo me assustou. Que verve, que atriz, que mulher. A interpretação de Julliane Moore sempre me traz à mente aquele trecho de Clarice, acho que em “perto do coração selvagem”:

“De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo jovem”
Uma cavalo jovem, selvagem, indomado, pulsante esta é Julliane Moore (pelo menos a minha Julliane).


Das metáforas de Saramago/ Meirelles: Como lúcido comunista (espécie, infelizmente, em extinção) Saramago promove incursões pela filosofia política clássica tais quais discussões entre o estado de natureza x estado de sociedade, a origem da propriedade privada, etc. Notam-se tinturas de Rousseau quando o personagem de Garcia Bernal resolve deliberadamente deter o monopólio sobre a comida distribuída no “campo de concentração”... corta pro Rousseau: “quando o primeiro homem construiu a primeira cerca e disse isso é meu, os demais deveriam ter se juntado e dito não, isso não é seu”... Poizé o tal nascimento da propriedade privada, que se dá, e isso é bem explícito no filme, mediante o uso da FORÇA, da subordinação e (o caso do filme) na utilização do sexo como moeda de troca. Instaura-se o Estado de Guerra. Lampejos de Hobbes, Locke e similares são derramados na tela em meio à cegueira, excrementos, nudez e fome.
Outra filósofa que me veio à cabeça durante o filme (mas com esta eu acho mais difícil o Saramago estabelecer uma interlocução) é Hannah Arendt. Quando ela fala que não há nada mais eficaz na destruição do poder que o cano de uma arma. É isso o que acontece com a precária tentativa do Olftamologista-cego em estabelecer, via diálogo, certas “regras de convivência” no “campo de concentração” o que acaba por ser tratoradas por Gael e seu revolver.

Da locação: Apesar de ser um filme desterritorializado e se passar em uma cidade onde se fala inglês mas sem ser claramente anglo-saxão, com casal oriental e vilão de sotaque mexicano, etc, etc., para nós é possível perceber de cara que se trata de São Paulo. E detalhe, quando a cidade já está devastada não é preciso nem maquiar o Tietê. Ele por se já é um desastre.

Das conclusões: fica difícil fazer alguma síntese com o desfecho da obra. Quando o oriental começa a recuperar a visão, Julliane acha que está ficando cega, mas isto não chega a acontecer. Todos passam a ver o mundo de outra forma, perceber que era antes da tal “cegueira –branca” que estavam cegos. Para o mundo, para a vida. Diante desta certa, digamos, “facilidade de desfecho”, a primeira frase que me veio à cabeça foi aquela bem batida, ultra-desgastada, meio de caminhão que diz assim:

“Somente quando for derrubada a última árvore e a última vaca morrer, só então o homem perceberá que dinheiro não se come”.

Somente na cegueira os homens foram capazes de ver. E eu fico me perguntando se era só isso mesmo o que eles (autor e cineasta) quiseram dizer, ou sou eu que estou cego para as idéias de Saramago.