quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

[antigo e recuperado] A doença que não será romanceada.

Como o overmundo da publicizando todos os textos submetidos, achei este. Nem lembrava mais que havia enviado-o pro Site.

A doença que não será romanceada:

Interna/dia: Cena de terror. Manhã numa capital de um estado brasileiro.

Na fila de um hospital público uma mulher clama para ser acudida por não suportar mais a dor das pernas. Lenta elafenece. Às três da tarde o carro do IML chega para levar o corpo. Noscorredores, pacientes apavorados. O medo, a hemorragia. Soros suspensos nasmãos. Dores, manchas. Médicos eassistentes sociais descabelados. Gritos. Impossível não lembrar da peste, deCamus.

Mas não façamos do mosquito uma reificação. Pois se “A peste”,romance vencedor do Nobel de literatura escrito pelo existencialista francês AlbertoCamus era a metáfora, não constituindo uma enfermidade, mas sim conotandofenômeno o nazismo, o Aedes aegypti é real. Para ele e para a dengue nãohá metáforas: doença de país tropical e pobre. Sem vacina nem cura exógena.

Ao acometido pela “doença democrática” (que pula o muro dovizinho) resta apenas a hidratação, a auto-resistência do corpo e (para os quetêm) a fé. Para os que não estão (ainda) contaminados há o pavor de adquirirpela segunda ou terceira vez a enfermidade. Pânico porque, dizem osespecialistas, cada vez que se contrai dengue ela se apresenta mais grave.Pânico exorbitado pela voz de epidemiologistas que dizem sem meias palavras naTV “existem determinadas pessoas que ao pegarem dengue uma vez sequer irãomorrer”.

E o terror não termina nas unidades de saúde. Externa/ dia: Correrianas farmácias e lojas de produtos naturais. Repelentes. Folclores: “dizem poraí que o mosquito só voa noventa centímetros” escuta-se nos ônibus. “Borra decafé, nin indiano” recomenda-se na fila do banco. “Invadir o quintal da casaabandonada pelo vizinho” conspira-se timidamente nas ruas das periferias. Cadaum vivendo como se a próxima picada de qualquer inseto voador fossepotencialmente uma sentença morte. E não é?

O enigma da dengue desencadeia o horror de tragédiaspessoais e públicas anunciadas. Só que diferentemente do romance de GarciaMarques, não será apenas Santiago Nassar que morrerá. Diferentemente ainda doromance do escritor latino, a dengue não é boato que se torna fato. Ela é desdeo início uma realidade.

Realidade de um sistema de saúde pública com pouca eficáciapreventiva, sanativa ou paliativa. Pode-se argumentar que a culpa da dengue não éapenas das autoridades governamentais. E concordamos, entretanto o que estamosargumentando aqui é que a epidemia-dengue revela a cabeça de medusa de umsistema de saúde que desrespeita o direito constitucional à saúde eprincipalmente, desrespeita o lado mais vulnerável da população: o usuário doSUS. Se comparada a algumas unidades de saúde de Fortaleza, a entrada doinferno na Divina Comédia de Dante tornou-se conto de fadas. Pois se antes ousuário do SUS tinha que aguardar dois anos numa fila de espera para umaconsulta reumatológica (e esse absurdo não é ficção), agora ele morre vertiginosamenteem tempo real, nas filas.

Não, a dengue não será romanceada. Diferentemente datuberculose e da AIDS (cuja expressão romanesca tenha atingido seu ápice talvezem Thomas Mane Caio Fernando Abreu, respectivamente) a dengue conseguirá ser no máximo umsimulacro de romance B cuja epígrafe igualmente clichê poderia ser: “a saúde noBrasil está doente”. A adaptação deste roteiro pode ser vista na unidadepública de saúde municipal ou estadual mais próxima de sua residência.