quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Há sempre uma coisa ausente que me “Artaud-menta”

Fui ontem conferir Camille Claudel no “Pausa Dramática” do Dragão do mar.

Em tempos de orelhas e orelhas, como “discuto” no post anterior, é muito prazeroso ver um trabalho que ao transbordar intuição não deixa de lado o rigoroso processo de imersão no Ethus do personagem trabalhado. Abandonando cronologias, o tempo da peça é o tempo da criadora-intérprete. E diluída no meio das falas esculturalmente trabalhadas vi surgir aquela velha conhecida sentença: “há sempre uma coisa ausente que me atormenta”.

Obviamente o texto fala de “loucura”; intolerância; criação; talento e sobretudo “solidão medonha”. Entretanto, nada óbvia é a abordagem de atriz. Em diversos momentos do espetáculo (apesar de ter sido apenas uma leitura dramática) a atriz recria cenas de esculturas de Camille. Interessante também saber que muito do que é dito é criação da autora mas com um tom de escrita todo próprio da pupila de Rodin. Et Voíla! sem parecer caricatural. Excelência somente atingida pela dedicação de nove árduos anos de labuta em cima da artista plástica mantida durante trinta anos (e morta) pela “igualitária”, “fraternal” e “libertária” sociedade francesa.
Transcrevo a seguir trechos de uma crônica do Caio F. sobre aquela sombria frase:

EXISTE SEMPRE ALGUMA COISA AUSENTE
Paris [...] Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. [...] Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis,[...] — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”,feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.
Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia aplaca, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.
Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve — fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.
Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad , [...]. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.
Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.
O Estado de S. Paulo, 3/4/1994