Matin-Barbero ao analisar o pensamento de Walter Benjamim em seu livro clássico “Dos meios às mediações”, afirma que o escritor alemão possibilitou que desfrutássemos do cinema como uma arte que permite ver não tanto coisas novas, mas outras maneiras de ver velhas coisas e até a mais sólida cotidianidade.
É desta cotidianidade encarnada em nosso imaginário que fala o espetáculo: “Folguedo” encenado pelo coral da Universidade Estadual do Ceará. Embora não seja cinema e nem restritamente teatro, mas dialogando com essas duas linguagens, o grupo põe em tela alguns dos “nossos” folk tales como: o cantar anasalado das carpideiras; o boi; a tal molecagem dita “cearense”; o ritmo peculiar de “nosso” maracatu, etc.
Como meu ouvido é muito pouco apurado, deixo a crítica das interpretações para os experts. Contudo, apenas como expectador/pesquisador muitos elementos da montagem me chamaram a atenção:
Primeiramente é interessante perceber como, talvez inconscientemente, o grupo canta naquele espetáculo as complicadas relações de gênero que perduram em nosso estado. Vale ressaltar: o Ceará é a unidade da federação onde mais se matam mulheres. Não, não há nenhuma violação à lei Maria da Penha na apresentação. Contudo percebi ali a representação de relações de poder vivenciadas em nosso cotidiano de forma mais tênue, sub-reptícia, tão naturalizadas que quase imperceptíveis. No espetáculo, talvez propositalmente, as mulheres não possuem a fala. Estão alheias ao ato de nomeação, expressão, ou individualidade, são vozes dispersas e coletivas: são o coro. Todas as características “solo” estão prioritariamente ligadas às intervenções masculinas. Ao gênero feminino resta, a multidão, a ausência de especificidade e de certa forma a invisibilidade. Isso não quer dizer que elas estão “mudas”, ou resignadas no espaço privado, afinal elas estão bebendo cachaça e presentes em quase todos os momentos. Mas nunca como indivíduos, sempre como multidão. Até os personagens inanimados possuem mais destaque que elas: o boi, o burrinho, etc. Não estou dizendo aqui que esta seja uma falha do espetáculo, muito e pelo contrário, é uma interessante tradução e “captação” de nosso dia-a-dia, especialmente no Cariri, mas não somente lá. Tanto é verdade que a única mulher com certas características de individualidade é a mulher do “pai Tomás”. Et Voilá! Veja só, nem nome ela tem, sua identidade social é estabelecida não a partir de seu ser social, mas a partir de sua filiação matrimonial a um elemento do sexo masculino: antes de tudo ela é “a” esposa Nada mais brasileiro que isto, para aprofundamentos vide Roberto da Matta e seu hoje clássico ensaio “A casa e a rua”. E o espetáculo põe em pauta brilhantemente estas relações.
Algo que senti falta, se fosse este o objetivo, seria a percepção de como essas mulheres ocupam espaços de resistências mesmo dentro desta relação velada de dominação de gênero: como se dão suas lutas e influências difusas, mesmos no espaço privado, da “casa”. Mais uma vez reafirmo, isto não é um “erro” do espetáculo, afinal este fala de um Folguedo, que se dá prioritariamente no espaço público, “da rua”. Contudo instiga não ver as franjas do poder, as margens ali presentes embora não especificamente tematizadas.
Sobre a interlocução com as tradições, não conheço a fundo “o” sertão. A narrativa do espetáculo me pareceu moderníssima no sentido de tentar conduzir distanciadamente estes elementos que habitam nosso imaginário. Explico: durante a apresentação fiquei tentando “captar” qual era a intenção da obra. E percebi que esta se pretende ser uma espécie de “tipo-ideal” webberiano, no sentido de apreensão e tradução de características gerais daquele fenômeno: o folguedo. Tento explicar de outra forma: uma tradição não está solta e estática no ar. Ela se reinventa com elementos da contemporaneidade. Nunca esqueci por exemplo, de uma foto de uma romaria de Juazeiro onde uma velhinha enrugada carregando uma pedra na cabeça é conduzida por um rapaz vestindo uma camisa Adidas. O espetáculo Folguedo não se propõe realizar este diálogo com a contemporaneidade, o que acho pertinente e da ordem de escolhas metodológica, embora, haja sempre, inevitavelmente, a fissura e transbordamento do atual na linguagem. Ele seria aquele “tipo-ideal” que se atém às características que se pretendem gerais e relativamente estáveis. Entretanto durante o espetáculo me veio a preocupação da necessidade de se firmar aquelas celebrações como “um olhar” sobre “as” culturas cearenses e não “a” cultura cearense. Escrevi sobre isto em um post mais abaixo.
(o boi)
Aspectos outros: como relatei no post abaixo, é muito gratificante ver uma obra de arte caprichada e com produção responsável. Diante das agonias de se tentar fazer qualquer coisa nova, fora da ordem, dentro da UECE, vemos surgir resistências como esta. Ninguém nem nada mata a criação. Nem os quatro anos que se passaram de gestão desastrosa que enterrou na lama aquela Universidade, a minha Universidade.
Mas viremos a página e falemos de coisas boas: os figurinos caprichados, os adereços muito simpático com destaque para as almas: talvez um dos elementos ousados e pós-moderno da narrativa. No sentido de se fazer uma interpolação entre o pesado tema da morte e as cômicas cabeças de isopor das almas flutuando. Ponto para o espetáculo. Foram desses elementos que eu senti falta, e esta é uma interpretação muito pessoal (pois, mais uma vez fica claro que não era este o objetivo), elementos nas narrativas que mostrassem os “andaimes”. Mas mais uma vez estou falando aqui da recriação e apropriação que o espectador faz da obra. A arte é o momento da ousadia, um dos poucos espaços, nesses tempos de Capitalismo mundialmente generalizado, onde (ainda) é possível criar. O espetáculo cria.
Dos anseios: supérfluo dizer que a luz é fundamental num espetáculo. Lembro-me de Ricardo Guilherme improvisando uma leitura dramática no auditório central da UECE (Ah, a UECE) em meio a dois retroprojetores. A luz é a alma. “Folguedos” me lembrou aquela luz. Crua, como diz Cabral de Melo Neto: “mais que seca, calcinada”. Apenas com alguns respiros, como no momento da morte do Boi. Vermelho. Fora isso a Luz é o sertão, a aridez invariável sem aleluias, como nesses dias quentíssimos de final de ano. Talvez as limitações orçamentárias não permitam um trabalho mais consistente desses aspectos, o que também não chega a ser um erro crasso, mas deixa aquele gosto de que a apresentação poderia voar mais alto, mais alto, mais...
Destaques: A interpretação do bêbado. Nada caricatural. Eu só retiraria uma fala: “C* de bêbado não tem dono”. É redundante, supérflua e como tal, já está subtendida. Ademais eu também retiraria improvisação (?) sobre o aspecto fálico da bengala pois parece deslocado, pelo menos para mim.
No mais o show está por aí. Existe vida na UECE e janeiro vem vindo: Folguedos.