OU MINHA RECONCILIAÇÃO COM O POETA
Consumi poucas obras em sua completude como degustei e degluti a de Renato Russo/ Legião Urbana.
Conto nos dedos as que vivenciei com igual intensidade: 1. O seriado norte-americano The Wonder years/anos incríceis. 2. A novela quatro por quatro 3. A obra de Caio Fernando Abreu 4.A obra de João Gilberto Noll [ainda estou no meio do caminho] 4. A mini-série Queridos Amigos.
Mas aquele apego ao líder da LegiãoUrbana veio ainda na adolescência e depois de alguns anos reneguei a poesia de Renato aos lirismos juvenis. Lembro que quando comecei a ouvir Cazuza [já na casa dos vinte] pensei comigo mesmo: este sim é um verdadeiro poeta. De certa forma eu negava a esteira que foi Renato Russo e sua eficácia ao dar voz a todos os sentimentos confusos da adolescência.
Pois bem. Eis que hoje durante o banho procurava uma trilha sonora para acompanhar-me. Comecei com 14 –Bis. “Nossa linda juventude, páginas de um livro bom”. Lindo mas não era isso. E eis que desenterro no meio dos CDs empoeirados do meu quarto na casa dos meus pais “A tempestade ou livro dos dias”[1996]. Que obra. Completa: introdução, desenvolvimento, desfecho e epílogo [a linda, e minha favorita, o livro dos dias]. Este álbum fora erroneamente adjetivado como “deprimido” por Daniel [não consigo decifrar o sobrenome no encarte do cd]na apresentação da antologia “mais do mesmo”[1998]. Discordo.
Na verdade aquela obra é uma longa carta/poema de adeus. Como já anuncia a epígrafe de Oswald Andrade: “O Brasil é uma/ República Federativa/ cheia de árvores e gente dizendo adeus”. Numa época em que ser diagnosticado HIV positivo era sinônimo de sentença de morte.
Contudo, há outro lado. Como disse Caio Fernando Abreu em uma de suas cartas “tenho a oportunidade de vivenciar minha morte com dignidade”. Esta parece ser uma característica comum aos artistas do final do século XX acometidos pela SIDA. É neste sentido que “A tempestade” é uma obra completa. Nela é possível perceber Renato inteiro. Fechando sua arte. E mais que isso, transformando sua morte naquilo que ele melhor sabia fazer: Poesia.
Pinço, não por acaso, a música “Esperando por mim”. Enquanto eu jantava ainda há pouco, pois esta é a faixa 13 e eu já havia terminado o banho, percebi como aquela é uma música serena, autoconsciente. Também inteira. E como Renato Russo estabelece um vínculo [proposital ou não] com a novela “Way we live now”[“assim vivemos agora”] da extraordinária ensaísta e romancista norte-americana Susan Sontag[foto]. Quando ele afirma a resistência da vida: “estamos vivendo/ e o que disseram/ os nossos dias serão para sempre”. Impossível não associar ao livro de Sontag quando quando o narrador afirma: "Eu estava pensando, Úrsula disse a Quentin, que a diferença entre uma história e uma pintura ou uma fotografia é que numa história você pode escrever 'Ele continua vivo'. Mas numapintura ou numa foto não dá para representar esse 'continua'. Você pode apenasmostrá-lo estando vivo. Ele continua vivo, Stephen disse"
Na música a valorização das pequenas verdades encravadas no cotidiano, sem arroubos de romantismo: “Hoje não estava nada bem/ mas a tempestade me distrai/ gosto dos pingos de chuva/ dos relâmpagos e dos trovões” ou ainda quando diz “hoje a tarde foi um dia bom/ sai pra caminhar com meu pai/ Conversamos sobre coisas da vida e tivemos um momento de paz”. Contudo Renato, como já disse, não nos coloca diante de esperanças descabidas ou de transcendências confortadoras e também não nos esconde o pavor diante da morte: “e é de noite que tudo faz sentido/ no silêncio não ouço meus gritos”. Como dizia meu professor de Tanatologia, a morte é o único fenômeno da vida pessoal e intransferível. Ninguém pode vivenciá-la por nós.
Retomo a frase chave de “Esperando por mim”: “estamos vivendo”. Contra todas as previsões o corpo permanece vivo e acolhido por aqueles que o esperam: os pais, os verdadeiros amigos, o filho.
Note-se que este “estamos vivendo” é bem diferente da frase contida na música de abertura, “Natália” cheia de rancor, intenções digamos de visibilidade, quase militante, da morte e cheia de esperanças “nos trevos de quatro folhas/ a escuridão ainda é pior que esta luz cinza/ MAS ESTAMOS VIVOS AINDA”.
Ao contrário dela, Renato encerra “Esperando por mim” voltando para dentro de si, dos fechamentos das gestalts cotidianas dizendo que sim, “estamos vivendo/ E o que disserem/ os nossos dias serão para sempre”.