terça-feira, 29 de julho de 2008

Caio Fernando Abreu - inventário de um escritor irremediável, de Jeanne Callegari

By: Alexandre S.

(sob a licença Creative Commons BY-NC-SA 2.5*)

Reza a lenda que havia um professor na USP – como Caio, sou chique, não vou dizer o nome – que para alfinetar Marilena Chauí sempre dizia: “o problema da Madame são as aspas”. A afirmação -perversamente- insinuava que a filósofa não criava nada, mas apenas transcrevia ou adaptava o pensamento de Espinosa para a realidade brasileira. Não li o filósofo do século XVII o suficiente para me posicionar definitivamente em relação a essa questão. Mas em relação ao Perfil de “Caio Fernando Abreu – O inventário de um escritor irremediável” que Jeanne Callegari escreveu eu acho que posso. Afinal de contas, como todo fã, eu também tenho “um Caio para chamar de meu”, ou seja, possuo a minha versão do escritor gaúcho.

Mas seria injusto e mentiroso se dissesse que Jeanne faz uma simples colagem. Fruto de um trabalho árduo, entre dezenas de entrevistas (talvez o que mais forneceu um arejamento ao livro) esta mineira de apenas 27 anos (só dois anos mais velha que eu!) é uma heroína. O resultado é que o livro encanta sob alguns aspectos, faz rir em diversos e, entretanto, peca em algumas omissões e/ou erros metodológicos.

Primeiro você acha que é muita audácia querer contar a caleidoscópica vida de Caio F., Laika, Jacira, Marilene, e todas as demais personas de Caio Fernando Abreu em menos de 200 páginas. E é. E talvez o que, mais interesse deste relato seja essa arqueologia “apressada” de uma jovem que não foi contemporânea do escritor biografado (ou seria “perfilizado”?). Já na introdução a autora fala da dificuldade em compilar os “cem mil Caios”. Via de regra acho um erro começar qualquer criação artística com desculpas. Entretanto nesse caso, foi muito bem colocada para tentar neutralizar as, como dizia o próprio Caio, “antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio.”

Outro acerto: na verdade era uma furada da qual ela deve ter estado consciente desde o começo e, enquanto pôde, evitou. É o seguinte, quem lê algo sobre a vida de Caio espera uma linguagem derramada no melhor estilo “Caio F., o primo da Cristiane”. Não é o que acontece. Contido, o livro em alguns momentos é francamente acadêmico. Há trechos em que você pode visualizar (mentalmente) até a formatação original com os recuos de parágrafo e todas aquelas regras da ABNT. Mas isso não é uma perda. Não ter se arriscado a “imitar o rítmo-narrativo-Caio-F.” salvou-a, por exemplo, de comentário semelhantes aos que José Antônio Arantes fez sobre Michael Cunningham em relação ao livro “As horas”: “é uma travesti das obras da romancista (...) Não tem nada a ver com Virginia Woolf”, disse o crítico literário. Posição esta severa demais, uma vez que, sendo cópia ou não, aquela é uma obra com vida própria. Bem, voltando à Jeanne, há nela tentativas de lirismos (segundo a ilustrada tão “lugar-comum” quanto alguns momentos de Caio), mas não é o forte da obra. Concordo e volto a eles mais embaixo.

A jornalista mineira acerta a mão quando estrutura a narrativa como –dentro de suas limitações- um romance. Há ainda certo o tom cinematográfico nele. Uma interpretação muito pessoal diz que, não por coincidência – pois como dizia Jung é puro sincronismo – o “Perfil” se aproxima da obra de Cunningham e de referências importantíssimas de Caio, como foi a sua paixão pelo cinema.

Se no prólogo de “As horas”, o romance se inicia com o suicídio de Virgínia, o prólogo do

“Perfil” de Caio é aberto pela sua tentativa de suicídio. Outra sincronia é que o primeiro capítulo de ambas as obras têm uma mutação brusca no tempo exigindo de ambos os narradores quase a mesma frase: “Estamos em Nova York, no final do século XX” (As horas) e “É década de 1940 em Santiago do Boqueirão” (no perfil). Até aí pode-se argumentar que estou forçando a barra. E até concordo, entretanto é indiscutível a referência ao suicídio efetivo de Richard Brown em “As horas” ao narrar a tentativa de suicídio de Caio. Há ainda a fictícia forma, meio despretensiosa, de como a primeira frase dos romances “Mrs. Dalloway”(no livro “As horas”) e “Dulce Veiga” (no “perfil”) surgem. Ambas fora de casa. Uma dizendo “Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself” e o outro dizendo “Eu deveria cantar.”. Não há como passar despercebida também a desconfiança de Caio e Richard em relação ao ganho de prêmios e homenagens, que ambos receberiam por estarem no final da vida (um receberia o premio pelo conjunto da obra e o outro foi o patrono da feira de livros de Porto Alegre, respectivamente). As semelhanças continuam: ambos HIV positivos, ambos obcecados por Virginia Woolf, ambos fazendo seus amigos orbitarem em torno de suas fixações. Como diz Callegare “[havia] um teatro que Caio montava ao redor de si, sempre que tivesse platéia”(p.100). Ponto para o Perfil.

Outro ponto “cinematográfico” positivo que o livro traz é narrar as peripécias do Caio menino, no cinema de Santiago, nas brincadeiras no quintal com os primos, etc. Como não se lembrar do Totó de “Cinema Paradiso” obcecado por Brigitte Bardott, perdido naquela Gincarlo, no meio do nada? A revelação da fase “infância” de Caio, que era praticamente desconhecida do grande público, é um dos pontos altos do livro.

As “coincidências” continuam, pois o menino Totó se torna o adolescente sonhador e posteriormente o famoso cineasta (Salvatore) desiludido com tudo e com todos. Não é a toa que, sobre o filme, Caio escreveu ao amigo José Marcio Penido em 1990 “Impulsos de ligar [desmarcando uma entrevista], mentir que estou com febre, assistir pela terceira vez Cinema Paradiso, chorar novamente na cena dos beijos”. É mais que semelhança, como diria Caio, é atávico.

O clima cinematográfico continua na juventude com uma narrativa à lá “Bar esperança” (de Hugo Carvana) tendo por um dos momentos altos a transcrição do trecho: “alguém me disse, já faz tempo, num bar: ‘um dia alguém precisa virar a mesa ao invés de só virar uma Brahma’. Arrotou, chamou o garçom (seria o Isaac?) e pediu outra”. Se a citação é convincente acerca do encurralamento daquela geração, a autora tende a reduzir o tema complexo e ambíguo da ditadura ao dizer que aquela “era uma dose amarga que a sua geração [a de Caio] tinha que engolir sem reclamar.”(pg. 75). Sabe-se, entretanto, que as formas de resistências, engajadas ou não, bem sucedidas ou não foram as mais diversas e imagináveis. Se o livro escorrega neste ponto ele acerta mais na frente ao contextualizar com hesito a transição dos 1970 para os 1980, da hegemonia do conto para a demanda de romances por parte das editoras (p. 138).

Caio, assim como Vera Fischer, ele dizia, nunca foi um funcionário público exemplar e, portanto às vezes parece dispensável a presença de discursos como: “embora fosse recatado a maior parte do tempo(...) de vez em quando tinha uns surtos de galinhagem”(p.146). Além de soar como uma “defesa” do morto frente a AIDS (fica parecendo que ele foi pego desprevenido numa pulada da “cerca da moral”) é redundante, pois já estava implícito e explícito no texto até então.

Há algumas questões de forma que não se justificam: como por exemplo, a repetida apresentação de alguns “personagens” e citação de fatos recorrentes como se não tivessem sido abordados anteriormente. Por exemplo, “o primo Neltlair, que viria a se tornar o cartunista Santiago” e por aí vai.

Algumas características básicas do escritor gaúcho a gente sempre teme que sejam esquecidas ou apenas vagamente citadas. Mas Jeanne primorosamente aborda algumas, tais quais a dificuldade do trabalho jornalístico, a terapia do “fala grosso veado!” e o fato de Caio sempre ter buscado em seus livros de conto uma unidade tanto temática como formal (pg. 85).

Esta unidade parece ser interpretada pela autora como uma quase identificação entre o literal com o literário; optando em diversos momentos por interpretar a vida de Caio a partir da ficção. É redundante dizer que a obra de Caio é escadolosamente auto-biográfica. Como bom leitor que foi de Graciliano Ramos – talvez mais influenciado pelo autor de “memórias do cárcere” do que muitos querem admitir, como diria Ítalo Moriconni- Caio buscava em suas vivências a sua matéria de criação. Mas não era uma simples transcrição do cotidiano, era uma auto-ficção.

Reduzir a ficção à literal narrativa do real pode ser um caminho. Mas há a possibilidade de desnutrir a interpretação. É que acontece com o conto intitulado “Além do ponto” de Morangos Mofados, no qual a maioria dos leitores e críticos (Jeanne está dentre eles) embarcam na narrativa como se ela fosse apenas “um homem à procura de um homem” quando na verdade Caio sempre dizia que aquela era um estória que relatava conto falava da procura de Deus. Falo isso não por acaso, pois um dos primeiros textos de Caio que li foi “Pela noite” e achei durante muito tempo (até me informar melhor sobre o escritor) que Caio era literalmente a personagem Pérsio.

Quando chega a metade do livro você, mexeriqueiro, se pergunta: e os casos de amor serão apenas citados? Nenhum desnudamento? Nada assim, meio, TV Fama? E tem, não no estilo TV fama, ainda bem, mas tem. E tem mais.

O trabalho trás à luz momentos importantíssimos e informações não tão fáceis de ser encontradas: destaco a transcrição IMPERDÍVEL do arranca-rabo ocorrido entre ele e minha conterrânea Rachel de Queiroz no programa Roda Viva da TV Cultura. Há também a participação no Programa do Jô, a informação sobre o encontro com Érico Veríssimo e pouco a pouco a revelação de um Caio melhor sucedido, em termos de reconhecimento de público, do que aquele que ele costumava pintar nas cartas. Há ainda a transcrição do texto belíssimo que Caio escreveu no programa da peça “Reunião de Família”, adaptada por ele do livro homônimo de Lya Luft.

Além de revelar a maioria das situações inéditas da infância, a autora põe novamente em público causos como o “namorico” com Cazuza, o incêndio atrapalhado no apartamento, a travessia da Europa ao som de “Xicotinho e Salto Alto”.

Está inesperada leveza faz a autora se permitir vôos também agradáveis, à lá Caio. Como quando conclui que era “necessário manter uma distância saudável dele, uma distância, digamos sanitária” (p.85) Ou quando para aliviar o peso do tema da AIDS revela que “o medo era tão comum quanto uma música da Legião Urbana”(p.108). E dá até para perdoá-la quando dá seus auspícios de tietagem: “Esse homem é ou não é um romântico incurável?”(p. 122). Só não dá para perdoar certos escorregos quando falta linguagem como em: “um atestado da maneira com Caio leva a vida” ( p. 59); “quem ele queria não o queria” – (p.11). Culminando num involuntário trava-língua: “Caio vivia seu caso com Cacaia” (p.112).

Dos grandes ausentes fica subtendido nos agradecimentos que Gil Veloso e Luciano Alabarse não se dispuseram a ceder entrevista. Mas há o silêncio também de outros nomes importantes como Lygia Fagundes Telles, João Gilberto Noll e Lya Luft. Coincidência ou não, não há cartas destes três escritores publicadas na coletânea de correspondências organizada por Ítalo Moriconni em 2002.

Há ainda outras coisas menores, contudo importantes. Como a passagem em que o texto dá a entender que Caio traduziu “Sonhos de Burker Hill” de John Fante, quando na verdade ele escrevera apenas a apresentação e se quisermos ser politicamente corretos ainda aparece a utilização do termo “homossexualismo” em vez de “homossexualidade” e “morreu de AIDS” e não “em decorrência da AIDS”.

Quando narra a primeira visita de Caio a Londres, Jeanne crava perfeitamente a frase “Sentia-se um estrangeiro onde quer que fosse sem possibilidade de cura”. A referência é explícita a Reinaldo Arenas. Entretanto esta é uma das omissões lamentáveis do livro. Talvez seu único erro grave. Nele, Arenas aparece erradamente como um chileno. Dá para pensar que é erro de digitação, algum lapso, “afinal já estamos no terceiro quarto do livro”. Mas à medida que o texto avança percebe-se que a autora talvez tenha passado despercebida por um ponto CRUCIAL (e me pergunto até se ela veio a conhecer a história) de Arenas. Pois é com a narrativa de Arenas que Caio elabora mais precisamente sua condição de estrangeiro eterno.

Cubano exilado, apátrida, amante de rapazes, perseguido, preso, censurado e mandado para campo de trabalho forçado pelo governo de Fidel, Arenas costumava dizer que a diferença entre Cuba e EUA (Socialismo e Capitalismo) é que na ilha você leva um “pé na bunda” e é obrigado a aplaudir enquanto que na terra do tio SAM você leva o mesmo “pé na bunda”, mas é “livre” para gritar. Ou seja, não há muita diferença quando se é, nos termos de Caio, um maldito.

Caio receberia em 1992 a mesma bolsa que havia sido ocupada anteriormente por Reinaldo com o mesmo objetivo de escrever uma peça de ficção dedicada a cidade de Saint-Nazaré na França. É lá que o escritor gaúcho encontra o livro “Confissões de Saint-Nazaret” de Arenas e a mais desolada declaração de desterro: “Aún no existe el sitio donde yo pueda vivir. Talvez para um desterrado — como la palabra lo indica — no haya sitio en la Tíerra. Sólo quiera pedirle a este cielo resplandeciente y a este mar, que por uno día aún podré contemplar, que acojan mi terror”. (Arenas citado por Caio em Crônica de pequenas epifanias)

Mais tarde Caio leria a auto-biografia de Arenas entitulada “Antes que anoiteça” (e tenta traduzí-la para o português mas ninguém se interessa) na qual, suponho tenha encontrado outras decepções, pois alí Arenas desmascara (palavras de Caio) “figurões tipo García Márquez, Severo Sarduy, Eduardo Galeano, Julio Cortázar e outros asseclas de Fidel”. Note-se que dentre estes, estão nomes abundantemente citados, implícita ou explicitamente por Caio em toda sua obra. Sobre o livro Caio diria ainda: “Jamais sofri tanto com um livro — nem mesmo Fome, de Knut Hamsum, ou A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.” (Vide Pequenas epifanias)

Em termos daquela equiparação literal-literário, o texto escrito por Caio em Saint-Nazaret (Bem longe de Marienbad) narraria a chegada do escritor àquela cidade e sua busca (frustrada) por Reinaldo Arenas.

Outra questão complicada é a redundância (nada Caio F.) na explicação de alguns eventos, como por exemplo, quando ao perceber a chegada de um amigo ao seu apartamento, Caio dá boas vindas dizendo: “Bem vindo à Filadélfia”(p.169) numa alusão direta ao seu estado soropositivo. E logo em seguida Jeanne interpreta o evento. Me pareceu desnecessária a forma como a autora esmiúça o fato para o leitor.

Pode-se argumentar que sem a explanação a informação ficaria incompleta. Mas me pergunto também se uma das características mais fascinantes dos textos do Caio não seria exatamente esse lado fragmentário, saturado de citações dos mais diversos tipos e das mais diversas artes que, de repente, às vezes muito tempo depois nos surpreende despercebidos e então começam a fazer sentido devido a outro evento ocorrido fora do texto em si: ter visto um filme, ouvido uma música, lido uma orelha de livro, que por sua vez, digamos assim, fecha a Gestalt. Dá sentido.

Este “jogo” de Caio F. com o leitor acontece quando, por exemplo, ele escreve à Penido devaneando sobre a possibilidade de seu belo imunologista descobrir a “cura” para a “AIDS”, então se apaixonariam e fugiriam para o Pacífico Sul. Numa referência que - propositalmente ou não- lembra uma versão adulta e gay para o filme “o olho de Lorenzo”.

O leitor/ jogador – às vezes chatíssimo, como eu posso estar sendo – geralmente tem “um Caio para chamar de seu” e percebe com facilidade os trechos nos quais o livro se torna uma seqüência de compilações de prefácios, reportagens (hoje vastamente disponíveis na internet) e até cartas e trechos de contos sem aquelas famigeradas “aspas” sobre as quais me referi no início do texto. Um exemplo é o não-crédito a Miguel Torga da clássica epígrafe desejada por Caio em “Estranhos Estrangeiros” (livro póstumo) e que aparece solta no “perfil”. Para este tipo de leitor, além das vantagens já enumeradas, fica a sensação de ordenamento linear (embora nem sempre creditado) do vendaval disperso de informações cibernéticas ou não, lendárias ou não.

Por outro lado, para o leitor iniciante fica esta obra introdutória que tem exatamente por mérito o acesso direto e confiável às informações da vida do autor, intercaladas com maravilhosas citações. E não seria esta a função de toda biografia?