domingo, 20 de julho de 2008

Clarice, mendiga.


“A desgraça não tem limites” – A menor Mulher do Mundo. Clarice Lispector

Dizem que depois de uma inusitada e estonteante suspensão do cotidiano vem dolorosa volta. A epifania passa. Como nos contos de Clarice, tudo retorna relativamente ao que, um pouco sem cuidado, convencionou-se chamar de “normal”. Então foi mais ou menos assim: depois de uma viagem a Salvador e de uma primorosa etnografia da noite urbana daquela cidade. A volta à rotina. Aos afazeres acadêmicos de pesquisador brasileiro mal pago. Uma preguiça assolava. Uma vontade de não fazer. Uma falta.

Passei uma semana assim. Meio no stand by. Inventando coragem decidi encarar a fera. A devoradora rotina. Seleção de textos, reformulação de artigos, esqueletos dos capítulos que faltam para a dissertação, pagamento de inscrições em congresso, etc. Didático e aplicado juntei uma pilha de textos, xérox e fichas e me dirigi à parada do ônibus. O destino: a Universidade.

Foi neste entre-caminho que a vi. Como naquela crônica triste do Caio Fernando Abreu sobre a dor da prostituta. Ela estava lá. Não, ela não era uma profissional do sexo. Poderia ficcionar dizendo que ela era uma mendiga, uma desgarrada, ou para utilizar os termos da academia: uma desfiliada. Mas ela também não era assim.
Arrastava duas crianças catarrentas (porque hoje estou meio perverso). No corpo a marca de uma vida sofrida. Gritando pela, provavelmente, filha de uns dois anos, descalça e sentada no chão. Folheando um novo testamento. No braço outra criança, calçada.

Mas o que me chamou atenção não foi aquele despossuir infelizmente naturalizado. Fui constrangedoramente fisgado por aquele olhar hipnótico que ela naturalmente exalava. Já o vira antes e como preparando um suspensezinho barato eu diria que fiquei tentando recordar de onde, de onde eu conhecia aquele fitar? Oblíquo e incisivo. Então performático eu diria que milhares de rostos passaram pela minha cabeça. Conhecidos, famosos, anônimos. As sinapses tentando fazer a síntese. O colorido do cérebro buscando.Como um google natural a varrer regiões da cabeça tão coloridas quanto um quadro de Andy Warhol. Cláudia Raia, Marelin Moorol, Clara dos Anjos.

Então, dando mais vida a ficção e incluindo um tema meio juvenil, meio bobo eu concluiria abismado que era o olhar de Clara dos anjos. Ele –o rosto - parou na minha frente. Semi-transparente, coloidal. Mas era a minha Clara, não a da literatura.
Ainda num simulacro de emoção eu voltaria ao ensino médio, meus dezessete anos. A menina por quem me apaixonei. E que sem ainda ter lido uma linha de Clarice Lispector, tinha aquele mesmo olhar cavernoso. Cavernoso como aquele rosto impresso nas orelhas dos livros. Cavernoso como o olhar daquela mulher arrastando as duas crianças catarrentas na parada do ônibus.

Hoje Clarice desapareceu, Clara está na Itália – pelo menos quero acreditar que sim. E aquela mulher? Exausta. Maltratada. Vencida pelo peso de ter nascido na barriga da miséria. Sem a regalia uma trégua como uma semana em Salvador, por exemplo. Onde estará?