quinta-feira, 31 de julho de 2008

Dois caminhos para as trevas no paraíso:



Notas após a leitura de “NÃO PASSARÁS O JORDÃO” in trevas no paraíso:



Caminho1, a memória:

Como já relatei em outros textos, a ditadura militar, desde quando eu era muito pequeno, sempre mexeu comigo de uma forma que até hoje nem eu entendo. Já pensei até que desencarnei nessa época e reencarnei imediatamente em 1983.
Mas não sinto fascínio por ela como quando, vez por outra, ela virava assunto na mesa de bar pós-aula da faculdade. Companheiros exaltados, citando o discurso de Caetano “vocês não estão entendendo nada”, canastrões de peito estufado adorando a platéia que lhes rendia atenção ao narrar as formas de torturas que vagamente leram na orelha de “Brasil nunca mais” (E você pode ir conferir que este livro não tem orelha.. Só quero ser um pouco perverso).
Enfim ao contrário dessa performance-pós-ditadura-que-não-vivi, o governo militar me faz lembrar inevitavelmente da figura de Wladimir Herzog que já estava nos meus livros de história da sétima (ou seria oitava?) série . Pendurado, suposto suicídio, judeu, jornalismo, TV Cultura. Como também já falei, encharca a memória a minissérie da globo, o filme baseado no livro do Gabeira, nessa época pensei até em fazer vestibular para História, etc, etc.
E como na história não há “se” prefiro nem arriscar a pergunta que meus colegas se fazem: “O que eu teria feito SE tivesse nascido sob a ditadura?”

Me resguardo o direito de não cantar um passado dilacerado que não vive, pelo menos não daquela forma quase necro-prazerosa e na segurança da democracia. Até por que diante dele fico paralisado, constrangedoramente paralisado. E indignado. Indignado com a não-punição dos abusos. Indignado com o silêncio das autoridades que fazem vista grossa sobre a abertura dos arquivos daquele período de trevas.
A verdade é que o que vi, li, ouvi sobre a ala HARD da ditadura gera em mim um sentimento de IMPOTÊNCIA GARRAFAL. Tão grande que só Susan Sontag conseguiu descrever mais ou menos o que este tema me faz sentir. Estou falando do livro “Diante da dor dos outros”.
Para a professora Rosa Bueno Fisher , Sontag mostra que temos “o sentimento intenso e contínuo de que, afinal, não há nada a fazer diante do horror e das injustiças. E as tragédias parecem provocar uma certa passividade, um misto de solidariedade com os que sofrem e de não-cumplicidade com aquilo que produz o sofrimento.

Talvez a frase central do livro da ensaísta a ensaísta americana, seja: “NOSSA SOLIDARIEDADE PROCLAMA NOSSA INOCÊNCIA, ASSIM COMO PROCLAMA NOSSA IMPOTÊNCIA” (SONTAG, 2003, P. 86).
Credo. Parto pro próximo caminho antes que me perca neste.


Caminho 2, o livro:

Tudo isso me veio a tona pela leitura de “Não passarás o Jordão”. De Luiz Fernando Emediato. Confesso que minha leitura da novela foi extremamente digamos assim.. .viciada. No sentido de que antes de iniciar o Jordão já havia lido muito sobre o escritor, a comparação com Shirley Temple, um auto-reconhecimento de exagero nas críticas positivas sobre o texto, etc, etc.
Emediato cria a história de Claúdia B. militante comunista presa e torturada pelo governo militar. Há ainda a intercalação com a transcrição do Laudo cadavérico de Wladir Herzog e de sessões parlamentares tendo como temática os direitos humanos.
Durante a leitura (e estou com pouquíssimo tempo para ler, não fosse a qualidade do texto e minha fixação-repulsa pelo tema) a figura de Herzog estava todo tempo na minha frente entre o livro e eu. Mas não era aquele da foto do livro de história. Era a aquela figura viva, careca, com olhar doce, meio de lado.
O resgate contemporâneo da narrativa de Emediato tem esse tom de concomitância: o escrever e o viver simultâneos. Neste sentido ela [a narrativa] não é uma avaliação das trevas ou do paraíso, mas uma espécie de diário de campo ficcional no bojo –e às vezes nas adjacências- do furação (estendo esta constatação para os outros contos que já li da coletânea: verdes anos, Os lábios, Zarathustra).
Em suma, para mim a novela trata antes de tudo da banalidade do mal nos tempos da ditadura militar. “Extrair confissões é um arte” (p. 214) diz o torturador. E não cito “a banalidade do MAL” por acaso. Esta é uma das categorias principais das reflexões da filósofa Hannah Arendt acerca das Origens do totalitarismo (mesmo que para a escritora só reconhece como regimes totais o nazismo e o stalinismo). Mas vejam que interessante no final do texto de Emediato o narrador diz:
“Mas Cláudia imagina, na solidão irremediável do seu isolamento, que lhe mataram tudo, que lhe tomaram tudo, mas não sua capacidade de pensar” (P. 241). Vejam agora o que diz Arendt:
O isolamento é a impotência, isto é, a incapacidade básica de agir , [nele] as capacidades humanas de ação e poder são frustradas. Mas nem todos os contatos entre os homens são interrompidos , e nem todas as capacidades humanas são destruídas. Toda a esfera da vida privada, juntamente com a capacidade de sentir, e inventar e de pensar, permanece intacta [diante do fenômeno totalitário]. (ARENDT, 2002: 527)

Iisso confirma a minha tese de que a arte sempre sente primeiro antes das teorias racionalizem. Mesmo diante da impotência garrafal, diante da dor do outro (depois comento o espetáculo que vi baseado no livro e encenado pela Cia de dança Lia Rodrigues do RJ) não é suprimida a possibilidade do NOVO (também GARRAFAL) e como hoje estou cheio de citações aí vai mais uma:

“nem mesmo os governos totalitários podem negar essa liberdade (...) por que ela equivale ao fato de que os homens nascem e que, portanto, cada m deles é um novo começo e, em certo sentido, o início de um novo mundo” (Arendt, 2002: 518).

Emediato finaliza aquela violenta e sombria novela exatamente com esta esperança. Pois “tudo é possível, posto que existe a esperança”(p. 241). Mesmo que a experiência histórica tenha mostrado que, como disse Florestan Fernandes, ocorreu uma conciliação pelo alto. Na negociata da eleição de Tancredo, na virada do Paulo Brossard (não vou ser hipócrita, não sei nem quem é) e até mesmo nos descaminhos dos projetos que gestaram o Partido dos Trabalhadores. Diante disso tudo, da dor do passado recente e da dor contemporânea na “ fome dos meninos que têm fome”(como cantou Adriana Calcanhoto) Emediato resgata em seu texto a antiga proposição do marxista italiano Antônio Gramsci: “Pessimismo no diagnóstico, otimismo de vontade.” Eu iria terminar esse post assim:

Meu deus (note o dê minúsculo) como a estupidez humana pode ser grande.

Mas como Emediato adora personas, signos e arquétipos bíblicos. Encerro com o último parágrafo de Origens do totalitarismo onde a JUDIA Arendt revela de onde busca inspiração na sua reflexão sobre a vida ativa: SANTO AGOSTINHO.

“Permanece a verdade de que todo fim da história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa,a única ‘mensagem’ que um fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est- ¬‘o homem foi criado para que houvesse um começo’ disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós”(2002: 531)