quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Os convidados

[Texto escrito no auge das minhas leituras de João Gilberto Noll há 2 anos]


(ao som de “cinema paradiso” de Ennio Moriconne)

O despertador toca. Na ruptura brusca do silêncio, ele se levanta. Não ele não levanta. Detém a tentativa de olhar encandeado no celular. Desliga o renitente do som e diz para si mesmo, sem planejar, seiscentos e trinta, half past sex after meridian, seis e meia. Ainda havia tempo para ir à estação recepcionar os convidados.

Na cozinha invadida pelo cantos dos canários – deus, como podem ainda existir? aqui?- ele percebe que não havia café. E pressente um longo dia, ou pelo menos uma longa manhã descafeinada. Ainda sonolento realiza com a maestria de qualquer ser ordinário aqueles pequenos rituais: banho, dentes, roupas, apagar luzes –esquecidas, acesas no varar da noite – fechar janelas. Porta.

Na parada do ônibus em direção à estação. Sono. Já à caminho dentro do coletivo, uma garota começa a cantar canções neo-pentecostais de uma destas igrejas caça níquel: “queima ele Jesus, queima ele”. Todos riem, ele está sério. Grave. Não gosta do modo paternalista como as pessoas (e não seria ele também uma pessoa?) olham para qualquer minoria. Pensa ainda: “não importa, afinal, eu estou queimado”.

Ainda era muito cedo. Metade da cidade dormia. Nada de carros barulhentos, garotos nos sinais. Só alguns – ainda bem - ambulantes vendendo café nas esquina antes que passasse a fiscalização da prefeitura. O rapa. Cantarola miséria S/A: “senhoras e senhores estamos aqui pedindo uma ajuda por necessidade...”

Ele chega á estação no horário combinado: sete e quarenta. Mas não estava em Estocolmo, pensa, ou qualquer outra cidade onde é possível acertar o relógio pela pontualidade dos transportes públicos. Sabe tudo sobre estar atrasado. Era uma de suas especialidades, embora nunca admitisse.

Pacientemente os aguardava, mas tinha esperança de que não chegassem. Ele na estação. Levantara muito cedo, com não era de costume. E como se fosse a trilha sonora de um filme que não pagaria para ver, as canções de Ennio Moriconne serpenteavam pensamentos, numa espécie de Original Sound Track para aqueles dias desertos, ressequidos de álcool e emoções. Como se ele fosse mais um Salvatore que quer ir embora daquela cidade, não tão diferente da Ginacarlo Italiana. Sicília, pensou. Clara. Estaria ainda lá? Ao menos chegara lá? Provavelmente nunca saberia. Então pensa, apesar de nunca ter cruzado o Atlântico: como podem dois locais ser tão parecidos? Como um arquétipo da inércia, completou.

Embora queira ir embora não poderia se tornar um errante, pelo menos não agora. Na verdade, naquele momento, tinha que ser exatamente o oposto. Algo entre anfitrião e recepcionista. E o desconforto das esperas à medida que os ônibus começavam deixar a estação. Mas e os convidados? Eles não chegavam. Era sábado e dali há algumas horas os bares estariam repletos de. Deixa par lá.

Ele guarda sua atenção nos transeuntes e suas respectivas bagagens. Não estava excitado. Tudo parecia tão idílico e triste. Como algo que não estivesse mais ali, ou talvez nunca tivesse estado. Deus.. Lembrou de Caio. Aquela sensação. Mas a vida aqui não é como a de Mrs. Dalloway, sempre fazendo recepções para driblar o silêncio. Não, ele não havia saído para comprar flores e seus convidados que não chegavam. Ônibus deixam a estação. Poderia entrar em qualquer um deles. Mas ele não quer chegar aos seus destinos.

Moriconne continua tocando. E ele ainda estava lá. Mas aquela, até então vaga sensação começou a adentrar vielas mais importantes, saltando de súbitos para as avenidas principais da consciência. Com se fossem os ratos-idéias encantados pelos acordes melancólicos do compositor italiano. Não, não eram ratos-idéias por que não era de um todo racionais, palpáveis, quantificáveis. Era uma não-idéia que pulsava como música, sem vocábulos. Rumo ao precipício? Como no conto de fadas?

Ele naquela não-lugar. Naquele entrementes, local de partidas. Quantas definitivas? Aquilo também nunca se saberia. Ninguém saberia de fato, pois naquele país sem tradição em estatísticas não se sabia muito a esse respeito. Pensou em afazeres. No emprego instável. Cogitou se estava na profissão certa e desejou no fundo de seu peito descafeinado e desolado que os convidados não chegassem.

Não. Ele não queria.