sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Quem tem medo de Coker Spaniel?

Terminei a leitura de "Flush" de Virgínia Woolf . Comecei a lê-lo muito despretensiosamente em maio deste ano. Não pretendo me prolongar nos paralelos infindáveis (e inúteis) entre Clarice Lispector e Virginia Woolf. Mas Olha só:

Do conto “tentação” de Clarice Lispector comentado por Caio Fernando Abreu:
“um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — Tentação — na cabeça estonteada de encanto: ‘Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível’. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos.” (Crônica Pequenas Epifanias do livro homônimo)



Do livro Flush:
“Os dois se surpreenderam (...) Havia algo de comum entre os dois. Enquanto encararam um ao outro, pensaram: aqui estou eu. Então, sentiram: mais que diferente!(...) Ela realmente poderia ser tudo aquilo, mas ele... não. Entre os dois existia o maior abismo que pode separar um ser do outro. Ela falava. Ele era mudo. Ela era uma mulher, ele era um cão. Assim, intimamente separados, um encontrava o outro” (p. 31).

Coincidência? Cleptomania? Atávico? Ou os três ao mesmo tempo? Façam suas apostas. Não entro nessa discussão apenas jogo no ar. Até porque ela não leva a nada. No mais, larguei Flush logo depois destas páginas. Acho que a leitura era tão descontraída que me lembrou das coisas “sérias” que eu tinha que resolver. O tempo passou e numa espécie de regalo pré-qualificação da dissertação me permiti auto-presentear com “As ondas” da mesma autora. Paralisia: a abertura era (e é) sufocantemente esplendorosa. Quem leu sabe: “O sol ainda não nascera”. Tanto é que em julho em meu primeiro dia de estadia em Salvador, caminhando pela orla, em meio a vendedores ambulantes e casais melosos, não saíam da minha cabeça as palavras de Mrs. Woolf:
“Aproximando-se da praia, cada uma dessas ondas erguia-se, acumulava-se, quebrava e varria pela areia um tênue véu de água branca. A onda parava, partia novamente, suspirando como um ser adormecido cuja respiração vai e vem inconscientemente”.(p. 05).
Uma sensação terrível e medonha da “coisa viva” independente de. Sem falar que as ondas eram avistadas a partir de um “passeio ao farol” (nome de outro livro de Virginia), no caso, o Farol da Barra.

(Duplo-virgínia: Passeio ao farol vendo as ondas)
Ainda pensei em levar “As ondas” comigo para aquela Viagem (não é proposital, mas este é outro nome de obra da escritora), mas acabei levando outro livro. Tentei seguir a seqüência de criação. Afinal, primeiro Virginia escreveu “As Ondas” (1933) e só depois, para “desopilar”, dera vida a “Flush”. A obra surgiu a partir da leitura das cartas de amor de Elizabeth a Robert Browninig, nelas Virginia se encantara pelo cachorro da poeta britânica que era descrito nas missivas com graça e até mesmo atributos humanos. A escritora resolvera dar vida aquele cachorro. Imagine as memórias de um cão narradas por Virginia Woolf. Não vou me estender no tema, pois tudo isto está muito bem contado na apresentação de “Flush” (edição da L&pm), na obra e nas notas da autora. No mais parei as “ondas” na página 29. O livro é considerado a obra prima de Mrs. Woolf e deve ser consumido com moderação. Ele contém uma overdose de imagens, texturas, sensações que são acompanhadas com a passagem do tempo de seis personagens (ou vozes) desde a infância até a velhice enquanto as ondas vão e vêm como também todos os demais movimentos da natureza.
Bem, depois do abandono de “As Ondas” (e já deu para perceber como minhas leituras são fragmentadas) retornei a “Flush” em uma tarde na sala de espera do médico. Acabei de terminá-lo.

O livro, concluo, é a expressão de uma artista que caminha com segurança nas searas de sua criação. Impossível não se apaixonar pelo coker spaniel, impossível não se deleitar com a escrita leve e sarcástica crítica social de Virgínia, ao mesmo tempo em que, também, é impossível não admirar a forma como a autora debruça suas principais e revolucionárias técnicas narrativas em uma temática tão fluente e tão comum, ordinária.

(Concluo “Flush” e olho para a lombada de “as ondas” com receio. Talvez ainda não seja a hora de voltar a elas).