Episódio I: Dente de leite (a memória)
Tenho todos os meus dentes. Mentira, tive que fazer aquela cirurgia para remover os lá de trás (aqueles que não servem para nada). Estranhamente eles não doíam, mas viviam inflamados. E por conta de medos de infecções, bactérias caídas em correntes sanguíneas e todas essas coisas que a agente ouve falar por aí, resolvi retirá-los.
Caso semelhante (embora não análogo) aconteceu com o “beijando dentes” de Maurício (e só quero chamar de Manuel) de Almeida. (Para não esquecer fico lembrando: o nome do personagem do “limite branco”): Ele não doía, mas desde a pré-leitura inflamava. E como aquela fantasia lancaneana que precisava ser atravessada, segui a intuição e, sem ao menos ler uma sentença do estreante escritor, fui estirpar a dúvida: comprei o livro. O nome do livro me captava.
(traumas de "insônia")
Dentes não estão entre meus assuntos favoráveis. Traumas de infância, dentistas terroristas, a zoadinha do motor, a mãe acordando a gente para confirmar se havia escovar e, a irremediável insônia pós-súbito-despertar. Inclusive insônia é um dos espectros que rondam os contos de Maurício. Mas volto logo a este tema. Lembro de uma dentista me dizendo que se eu não cuidasse dos meus dentes perderia todos eles. Que maldade é possível fazer na subjetividade de uma criança. Desde então, até os dias de hoje, não são raros, e já fazem alguns anos, sonhos com dentes caindo, sumindo, quebrando, encolhendo, sendo engolidos, dentes me perseguindo, eu perseguindo dentes, etc. Sem falar nas tentativas de interpretação supersticiosas: mortes, falências, doença. Tudo isso tem, de certa forma, a ver com o livro do jovem de Campinas, mas nada disso eu pensava ao tentar comprá-lo (o livro). Pelo menos, não conscientemente. “Beijando dentes” não me passava uma idéia de, como tenho lido por aí, uma simples incomunicabilidade. De cara o título me transmitiu a imagem de um casal descuidado, imerso na rotina que ao tentar reviver aquele antigo ato do beijo, por descuido (ou seria desinteresse?) acabava por chocar seus dentes. Esta era a cena inicial.
Muitas coisas se desdobraram desde a leitura, mas volto depois para contar mais. No momento (02:50 da manhã), só me falta ler o último conto “uma pedra à mão”. Vou pra cama com esperança de não-insônia e sonhos, de preferência sem dentes. Estes, eu prefiro na vida desperta, na minha boca e na boa literatura.